Psicologizando… | O Papel da Fala – Leitura Bibliográfica (II)
Nesta série de artigos, estou a analisar o livro de Alexander Luria The Role of Speech in the Regulation of Normal and Abnormal Behaviour (O Papel da Fala na Regulação do Comportamento Normal e Anormal), publicado em 1961.
Uma característica vital dos sistemas funcionais é que eles permitem que o homem vá além dos limites das suas capacidades físicas e organize formas definidas de comportamento deliberado cuja descrição tem deixado os psicólogos perplexos!
Quando uma mãe mostra alguma coisa à criança e diz “caneca”, o apontar e o nomear o objeto causam uma modificação crucial na perceção da criança.
A palavra que designa o objeto define as suas propriedades funcionais essenciais e coloca-o numa categoria de objetos com características semelhantes.
A criança está então atenta ao dedo indicador da mãe e muito cedo começa ela própria a usar o seu dedo para demarcar qualquer objeto no seu ambiente; ela não apenas compreende as palavras que ouve, mas também começa a nomear ativamente os objetos. Isto torna-se o fator principal no desenvolvimento mental da criança.
Assim sendo, a criança torna-se capaz de modificar ativamente o ambiente que a influencia; ao fazer uso da fala, a criança altera a força do estímulo que está a agir sobre ela e adapta o seu comportamento a essas influências.
As experiências partilhadas por Luria no seu livro mostram que falar com a criança pode, de facto, re-modificar a perceção dos estímulos e modificar também a “regra do estímulo mais forte”, fazendo de estímulos fracos mais dominantes.
Em primeiro, foram mostrados a crianças dos três aos cinco anos círculos coloridos em diferentes fundos coloridos, e foi-lhes dito para que apertassem um balão com a mão direita quando o círculo vermelho aparecesse no fundo cinzento e com a mão esquerda apertassem o balão quando o círculo verde aparecesse sob o fundo amarelo.
imagem retirada do livro
Esta simples instrução mostrou que as crianças se focavam no estímulo mais forte: o círculo. Então apertavam o balão de acordo com o círculo e não com o fundo: apertavam o balão com a mão direita mesmo que o círculo vermelho aparecesse no fundo amarelo.
A seguir, os círculos foram substituídos por aviões coloridos e os fundos continuaram os mesmos. Desta vez, os cientistas pediram às crianças que apertassem o balão com a mão direita quando o avião vermelho aparecesse no fundo amarelo “porque os aviões podem voar quando o sol está a brilhar e o céu está todo amarelo”, e que apertassem o balão com a mão esquerda quando o avião verde aparecesse no fundo cinzento “porque quando está a chover o avião não pode voar e tem que ser mantido no chão”.
Com estas duas novas instruções, os fundos coloridos ganharam uma nova força e mesmo as crianças de três e quatro anos reagiam aos fundos em vez de somente às imagens.
Como se pode ver pelas experiências, a força natural de um objeto pode ser facilmente modificada ao influenciar o sujeito através da fala. As imagens mudam radicalmente se usarmos instruções verbais que dêem uma propriedade especial ao estímulo mais fraco.
Somente em casos patológicos mais sérios, como na deficiência intelectual, este sistema de associações verbais falha ao não influenciar o processo de perceção.
Podem também consultar os restantes artigos da série "Psicologizando...":
Neuropsicologia - Como melhorar a nossa atividade mental Parte I | Parte II
A Importância do Brincar Parte I | Parte II
A Psicologia Clínica e o Trabalho com Crianças Parte I | Parte II
O Papel da Fala – Leitura Bibliográfica Parte I
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Muito interessante! É um prazer ler esse texto aqui. Você tem experiência ou conhecimento desse teste em algum caso de criança com espectro autista?
@matheusggr não tenho conhecimento do teste aplicado a autistas mas acredito que para um autista com défice mental seria impossível ter resultados, para um Asperger talvez não passássemos da primeira parte da experiência, a da instrução simples. Se não fosse um autista em terapia muito provavelmente teria dificuldade em entender a segunda instrução porque não iria conseguir entender que estávamos a dar um contexto social e cultural às imagens dos aviões... Acredito que iria questionar as características visuais dos estímulos e pôr entraves na instrução, e não passava daí por não conseguir visualizar a história por detrás da instrução que o cientista deu. O autista "funcional" tem que fazer o cérebro trabalhar de forma prática, parece-me que instruções como a segunda iriam confundi-los mais ainda. Já agora, posso perguntar se trabalha com autistas?
Entendi. Muito interessante esse teste. Irei estudá-lo e tentar aplica-lo. Eu estou em formação, e acabo vendo varios casos, porém trabalho mais com adultos. E por gostar da área de infância e adolescência, e por minha mãe ser psicologa foçada mais nessa área, me interesso por esses assuntos, planejo após terminar psiquiatria, fazer subespecializacao em infância e adolescência. Obrigado pela discussão.
Olá @helgapn, fiz um post mencionando você por causa da sua publicação! Se puder, espero que possa conferir neste post. Tudo em prol de uma boa interação para nossa comunidade #pt. Até mais!
Obrigada! :) Gosto quando nos ajudamos uns aos outros! Estou aqui para isso também! :) Vou ver o seu post sim @coyotelation!
Obrigado! A intenção é essa mesmo! :D
Ola @helgapn este artigo é super interessante! O meu filho de 20 meses está agora a começar a falar, e estamos a ensinar 3 línguas ao mesmo tempo. As imagens ajudam imenso a decorar as palavras e os sons, ele já vai associando nomes a imagens em português , inglês e norueguês. :)