Relatos Enteógenos - 03 - Salvia Divinorum

in #pt6 years ago (edited)

Vamos estudar então a planta mais controversa e complexa de toda a farmacopeia enteogênica: Salvia Divinorum. Polêmica, antes de qualquer coisa.

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Você pode não conhecer, ou talvez até se lembre de algumas notícias a respeito na mídia por volta de 2012 ou 2013 (o ano em que ela foi proibida aqui no Brasil), mas quem vivenciou de perto a saga da ascensão desta erva no meio popular dos psiconautas sabe bem o tamanho da encrenca. Mas vamos lá, uma coisa de cada vez. Vale a pena antes de mais nada respirar fundo e respeitosamente compreender a história dessa erva sagrada para muitos povos antes de julgar qualquer coisa.

Salvia Divinorum deve ter sido usada a mais de cem anos, por gerações na sua região natural, as montanhas mexicanas de Oaxaca. Foi "descoberta" pelo homem branquinho junto com a psilocibina quando foi pesquisada pelo ocidente popular. Porém, mesmo catalogada, só se tornou popular de fato após os estudos aprofundados do pesquisador Daniel Siebert um investigador etnobotânico. De lá para cá, lentamente a Salvia ganhou fama no meio enteogênico. Seu uso original consistia principalmente num processo ritualístico de mascar as folhas em pequenos bolos (semelhante ao processo das folhas de coca) e ir absorvendo o sumo destas até que entrasse então num estado de torpor e meditação profunda. O detalhe é que, assim como grande parte das plantas sagradas, quem as usava não era o povo comum e sim o xamã da tribo, da região. É ele que entraria num estado de consciência alterada buscando alcançar percepções inalcançáveis no estado de vigília ordinária. Normalmente a Salvia Divinorum era usada especialmente para que o xamã pudesse observar a pessoa por dentro e descobrir qual é a doença que lhe incomodava.

Com a ascensão do seu uso popular a Salvia teve uma guinada banalizadora imensa. A cultura do desejo pela despersonalização, pela viagem cada vez mais profunda e absurda incorporou sua voracidade na disrupção do uso tradicional da mesma. Do hábito original de mascar as folhas e alcançar um estado de torpor controlado e de elevação, criou-se os extratos de SalvinorinA (seu princípio ativo) em potências 10x, 20x, 30x, 40x.... até 100x. Ou seja. Algo como 1 grama de salvia fumada (sim, não mascada, mas fumada) equivalendo a fumar 100 gramas numa só tragada.

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O que veio dessa onda devastadora? Difícil dizer em termos particulares de cada usuário, mas o que temos é um arcabouço de absurdos, insanidades e situações assustadoras catalogadas no youtube. Alguém achou que seria uma boa ideia começar a filmar a reação do amigo depois de fumar Salvia e isso acabou virando uma febre, apenas mais uma no perturbador momento da humanidade onde o celular na mão não perde nenhum frame da realidade. E não posso deixar de assustar um pouco vocês com alguns exemplos do que foi postado na rede:

Atenção, essas imagens podem ser chocantes para alguns de vocês, não tem nada de mais, ninguém morre nem nada, mas assistir pessoas viajando em níveis absurdos de entorpecimento se contorcendo no chão não é agradável nem engraçado

Inúmeras coisas precisam ser explicadas aqui. Estamos falando de uma desvirtuação do sentido original da planta, dos princípios que regiam seu uso ritualístico, de um uso inconsequente feito por jovens das mais variadas idades e com todo o tipo de problematização possível. Em defesa da planta a única coisa que posso dizer é que, todo esse uso é absurdamente errado e irresponsável e que ainda que um uso correto, assistido por pessoas especialistas, cuidadores e guias de jornada, o uso da Salvia é brutal. Se existe um nível de coragem necessário para utilizar substâncias psicodélicas, a Salvia exige a coragem máxima, o nível 10. Por que não é brincadeira.

Como regra, toda substância psicodélica enteógena da categoria da Ayahausca, Cubensis, Lsd, entre outros, não causam dependência física nem psicológica, o mais comum é que o utilizador crie certa aversão de tais experiências devido a sua intensidade. Alguns jamais tem coragem de repetir (no caso da Salvia). Por mais feio graficamente que seja uma pessoa sob o efeito da SalvinorinA, seu efeito físico e psicológico não tem qualquer dano comprovado e seu uso no passar das décadas ainda que baseada em apenas estudos observacionais não comprovou qualquer dano para o corpo humano.

Ok, agora já pode perguntar, qual é a vantagem de se utilizar algo tão assustador?

Não sei se posso falar sobre vantagens, mas posso falar sobre níveis de alteração da mente, de expansão. É sabido que a SalvinorinA assim como o DMT são as duas substâncias naturais enteógenas mais fortes que existem no mundo (ao menos das descobertas até hoje). Está escrito no sangue do homem que este é um ser de buscam, de desejo de mais, de vontade de poder, de absurdos, então não tem segredo. O homem usa a Salvia para descobrir o que tem do outro lado. E nesse caso, o negócio é bem mais sério que qualquer outra brincadeira.

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Documentário interessantíssimo sobre a Salvia, da série Hamilton's Pharmacopeia

Não me sinto confortável em detalhar qualquer relato meu aqui de uso da Salvia Divinorum, então irei apenas fazer uma catalogação detalhada dos efeitos comumente sentidos por quem a utiliza. Não se sente necessariamente todos juntos e as vezes não se chega a sentir nem metade disso. Cada experiência é única.

  • Perda da coordenação física;
  • Riso incrontrolável;
  • Alterações visuais de diferentes níveis (tanto com sutis mudanças na luminosidade, cor, textura dos objetos quanto numa total troca de ambiente, percepção de outros lugares com inúmeros detalhes inéditos);
  • Experimentar múltiplas realidades consecutivas;
  • Paz profunda;
  • Medo;
  • Sensação de profunda compreensão/entendimento de tudo;
  • Confusão;
  • Dissolução da percepção de individualidade (aka dissolução do Ego);
  • Percepção de túnel (estar em um/ver);
  • Experimentar sensação de geometria "não-euclidiana";
  • Sensação de vôo/giro;
  • Imersão em energia;
  • Ligação com tudo;
  • Mudança na densidade da atmosfera/ar;
  • Mudança de linguagem/glossolalia;
  • Experimentar percepção de épocas diferentes;
  • Tornar-se um objeto inanimado ou parte dele (sofá, cadeira, pedra);
  • Sensação nítida de teatro/de matrix, de que tudo é uma farsa e todos estão atuando;

O já mencionado Daniel Siebert desenvolveu uma escala de níveis da experiência com Salvia para facilitar a percepção do nível da viagem experimentada pelo psiconauta:

S - SUTIS - Relaxamento, peso no corpo, apreciação sensual. Uma meditação suave, levemente estimulante sexualmente.

A - ALTERED PERCEPTION - Cores e texturas já estão mudando perceptivelmente, o pensamento menos lógico e mais divertido.

L - LIGHT VISIONARY STATE - Visões de fractais de olhos fechadas com clareza, visões de lugares e objetos, além de todas as sensações anteriores.

V - VIVID VISIONARY STATE - Cenários tridimensionais complexos e realísticos, completamente diferentes do ambiente em que se está fisicamente, fantasias complexas e detalhadas de olhos fechados. Estado em que se iniciam as "alucinações táteis".

I - IMMATERIAL EXISTENCE - Perda da individualidade, perda da identidade, consolidação com o todo (ou com o nada) total ausência de compreensão da vida ordinária.

A - AMNESIC EFFECTS - Perda da consciência, desligamento do corpo físico por um período curto, mas perigoso não só por confrontar barreiras completamente não conhecidas e pesquisadas do cérebro em interação com drogas, mas por que pode se machucar caindo violentamente.

Enfim. É isso que tenho para falar para vocês sobre essa planta. Fiquem a vontade para perguntar se tiverem alguma dúvida.

Fonte das imagens:
1, 2 e 3.


Obrigado por ler!


Brazilians.jpg

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Mais uma vez, parabéns meu amigo pelo excelente post!
A Salvia é uma planta que precisa mesmo muita coragem pra encarar mais de um vez. Comigo foi assim, uma vez apenas e já valeu pro resto da vida. Por sorte eu estava em um lugar seguro com amigos de verdade, pois eu entrei num estado alucinatório de sonho e não tenho nenhuma recordação do que aconteceu com meu corpo durante esse momento. Foi um sonho lucido onde eu não controlava o sonho, mas era como se eu estivesse assistindo outra realidade e fazia parte dela sem interagir. Apenas quando voltei a meu corpo que rolou um choque de realidades e tive que ser acalmado por amigos pela perda total da consciência de onde eu estava. Não fazia sentido ter mudado tão bruscamente de um lugar pro outro e só consegui me acalmar depois de lembrar que tinha fumado a Salvia pouco tempo antes... hehehehe
Se fosse pra usar a classificação do Daniel Sibert, diria que estava no V flertando com o A.
Muito boa essa série! Parabéns pela iniciativa!

Obrigado pela leitura e comentário meu amigo, sempre bom ver sua participação :)

Esse choque de realidade que vivenciou é intenso, sem dúvidas. Já tive uma experiência semelhante. No meu caso, perdi completamente a noção de quem eu era, estava naquele "Salvia Space" que chamam, no meu caso, eu me via/sentia apenas como uma bola de luz pequenina, semelhante a um girino ou espermatozóide, nadava numa espécie de labirinto de paredes de tijolos vermelhos, o chão tinha essa fina camada de água suficiente para eu ir escorregando e mexendo essa cauda. Havia um som de fundo, como o som do cosmos, uma espécie de música de notas desconhecidas e minimalista. Aliás, o céu era aberto, negro e estrelado. Em determinado momento naquela paz sem fim de nadar ali eu me dei conta de que não sabia quem era, o que era, o que fazia ali e por que. Foi APAVORANTE. Por mais que buscasse qualquer relação com o mundo real, não existia ligação com isso, não havia lembrança de existir outro lugar ou qualquer matéria. Depois de entrar numa euforia de busca por qualquer lembrança começaram a vir imagens vagas na "mente". A primeira que reconheci foi minha (já falecida) cachorra Alice, depois imagens da minha vida, minha namorada da época, etc. As peças foram juntando e formou minha memória novamente! Quando eu voltei eu estava com cara de que havia visto o que não pode ser visto, kkkkk.

Hoje em dia não tenho coragem de brincar com minha cabeça mais desse jeito.
Valeuuu! Abraço.

Esses posts mantém uma peculiaridade muito interessante. Além do modo que você passa. Fico sempre na espera do próximo. Esse me chamou a atenção o quanto essa substancia tem potencial de fragmentação do que chamou de ego, que pode ser entendido como eu ou sujeito também, lembrando a psicose primaria da esquizofrenia. Além da graduação feira pelo Daniel Siebert, vemos o potencial de acordo com a dosagem, e isso é algo muito em comum de todas as substancias, o quão tanto o efeito esperado, colateral ou toxico qualquer sustância pode fazer, independente se medicação ou outras drogas, nos leva acima do preconceito, um olhar a frente da ciência atual infelizmente. Mas como já vinhamos conversando, estamos caminhando na ampliação dessa área, muito por conta desses pesquisadores que fazem a ciência. Parabéns @thomashblum! Sempre uma grata surpresa seus posts!

Obrigado amigo! Realmente a Salvia é capaz de causar essa dissolução temporária e assustadora da "consciência de si próprio", não sei se leu, mas dei um breve relato de algo assim vivenciado ali na resposta ao fireguardian aqui mesmo nos comentários.
Feliz que goste dos conteúdos, sempre acho que não aprofundo o suficiente o artigo, mas é o que se dá pra fazer por hora hehe.

Gostei bastante do texto. Principalmente por você ter mencionado a forma com que era utilizada tradicionalmente e como que passou a ser usada pelo homem moderno. Isso me assusta. É uma espécie de desrespeito com a tradição, uma forma de prepotência. Parece-me prejudicial levar coisa assim tão poderosa para um mundo lúdico. Outra coisa interessante que você ressaltou é que não era a tribo inteira que utilizava, mas o xamã! Xamã é justamente aquele "curador ferido" que assume os riscos pelos demais; é parte da função dele. Tal como a lenda daquele xamã siberiano que ingere o amanita para, através da urina, dar uma versão menos tóxica para os demais.
Enfim. ótimo texto como sempre!

Exato, amigo. Hoje em dia eu prezo muito por esse método tradicional (que inclusive é mostrado no documentário que eu sugeri), a desvirtuação ou corrupção do método tradicional é clássico nas drogas, vemos isso nas folhas de coca, na extração do DMT ao invés do chá e até mesmo no açúcar, que afinal, deveria ser no máximo, um melado. Não julgo como errado o ato de extrair, por que sabemos da importância disso e da sintetização quando pensamos na medicina, mas em termos de drogas enteógenas, alteradoras da consciência e extraídas com tamanha facilidade como eu mesmo já pude fazer, é algo muito sério e perigoso e não apenas anti-tradicionalista. Isso é um tema vasto por si só, esse desejo impulsivo de alcançar a viagem mais alta e poderosa...
Quanto ao xamã atuando como quem enfrenta as experiências em nome dos seus "pacientes", você falou tudo, é isso mesmo.
Não sei completamente a respeito da cultura que utiliza as folhas de salvia, certamente mesmo lá em meio ao uso tradicional (sério, procure esse ep da salvia que vc vai gostar) os curandeiros já não seguem um ritual completamente original, de forma que os interessados em vivenciar uma experiencia de salvia podem mascar as folhas, e não apenas o mestre.

Bom deixar esse aviso!

A diferença entre o remédio e o veneno, está na dose.
Paracelso

No caso, entre a viagem e a loucura. Na dúvida, beba água hehe.


projeto #ptgram power | faça parte | grupo steemit brasil

Sem dúvidas, sábio Paracelso, hehe.
Tem gente que brinca com fogo e com neurônios.

Parabéns, seu post foi selecionado pelo projeto Brazilian Power, cuja meta é incentivar a criação de mais conteúdo de qualidade, conectando a comunidade brasileira e melhorando as recompensas no Steemit. Obrigado!

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Caramba não sabia que era tão forte assim, lembro de ter fumado uma vez numa peça de teatro do Zé Celso Martinez, no Oficina. No qual ele mesmo distribuiu cigarros para a plateia enquanto a peça não começava. Se foi S foi muito.

Salve amigo! Caramba! Que peça foi essa?? Haha! Existem alguns detalhes aí que são importantes a respeito da Salvia. O efeito psicodélico dela só é funcional e atinge o seu mínimo necessário quando você queima ela a uma altíssima altura, então é necessário fuma-la em um bong ou num cachimbo mantendo o fogo intenso enquanto traga. Só a brasa queimando como no cigarro não costuma funcionar mesmo, por isso sentiu algum efeito tão sutil.
Existe ainda quem fume salvia apiana, que é uma salvia muito utilizada nos rituais indígenas, chamada de Salvia Branca, essa não é psicodélica e no máximo causa uma limpeza no ambiente (para quem acredita).
Mas bem interessante sua história! Valeu!

hahaha as doideiras do Zé Celso, ele é famoso por produzir peças teatrais dramáticas com sexo explicito, uso de drogas, e questões sociais pertinentes aos nossos tempos. É legal já vi umas duas. E também por conta de uma disputa imobiliária com o Silvio Santos hehehe

Já tinha ouvido falar, mas não fazia idéia dos efeitos. Incrível como os olhos das pessoas se alteram. Parece filme de terror :/ Obrigada por dividir seu conhecimento e experiências conosco! Estou aprendendo bastante coisa. Seria legal um Steemit Ayauasca Ceremony :)

É assustador sim! Chega a ser ofensivo, não só para o uso tradicional e religioso da Salvia como para o bom senso. Haha!
Quanto a cerimônia Steemit ayahuasca é uma ideia interessante, porém polêmica pra caramba! haha!

Gostei da ideia !

Olá Thomas! Seu apoio seria muito bem-vindo nesse novo projeto dentro da comunidade de língua portuguesa na Steemit. Maior visibilidade para nossos posts em português. Tenha um bom dia! Segue o link: https://steemit.com/brasil/@muralresteem/postmural-deixe-seu-link-e-irei-resteem-para-voce

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