#FILMOTECA - O Terceiro Homem (1949)

Direção: Carol Reed | Gênero: Noir, Suspense
Ano: 1949 | Nota no IMDB: 8,2/10

Como alguns já sabem, na minha cidade temos um Cineclube (já falei um pouco sobre a ideia aqui). Reunimo-nos uma vez a cada duas semanas em um salão da prefeitura e, lá, passamos filmes clássicos do cinema (anteriores à década de 60 normalmente) e, depois, discutimos por horas sobre o filme em suas mais diversas dimensões.

ESSE TEXTO CONTÉM ALGUMAS INFORMAÇÕES QUE PODEM SER INTERPRETADAS COMO SPOILERS (apesar de eu ter evitado colocar as partes vitais da trama)

No dia 17 de fevereiro, o filme que passamos foi O Terceiro Homem(The Third Man), filme de 1949 dirigido por Carol Reed. A trama se passa em Viena depois da Segunda Guerra Mundial, quando a cidade está dividida entre americanos, russos, franceses e britânicos e um mercado negro floresce no centro da cidade que é marcada pela escassez e pelos tempos difíceis. O protagonista é Holly Martins, um escritor americano que, sem dinheiro, vai atrás de um trabalho oferecido pelo seu antigo amigo Harry Lime, que mora em Viena. Porém, ao chegar à confusa cidade, depara-se com o funeral desse mesmo amigo que lhe prometera trabalho e hospedagem. Harry Lime teria morrido atropelado em circunstâncias muito estranhas. Sendo reconhecido em um hotel pelos seus livros, Holly consegue um lugar para ficar com a condição de fazer uma palestra. Decide, assim, usar seu tempo na cidade para investigar a morte do seu velho amigo.

Na cidade, conhece a viúva de Harry, a bela Anna Schmidt, que também tem seus segredos. Juntos, prosseguem com a investigação do misterioso acidente que levara Harry Lime à morte. Tem início aí uma densa trajetória de pistas, acasos e elementos misteriosos que parecem anunciar uma grande conspiração naquele centro da Europa devastado pela guerra. A estória tem muitas reviravoltas que fazem, como em todo bom filme investigativo, o telespectador pensar em todas as hipóteses que solucionariam o caso.

O jogo com sombras é um dos grandes elementos do filme

O Terceiro Homem é um filme do cinema noir (negro em francês), que corresponde em boa parte àquela ideia popularizada de filmes dos anos 40 e 50 com detetives usando sobretudos e desvendando mistérios em cenários em preto-e-branco. Falando de modo mais técnico, o gênero recebeu influências do expressionismo alemão, o que pode ser comprovado no manejo do preto-e-branco, apesar de os filmes noir cederem um peso maior aos tons escuros, como o nome do gênero denuncia.

O aspecto mais rico do filme não reside em sua trama ou nas ótimas atuações, mas junto ao trabalho artístico da filmagem. Por pertencer ao gênero noir, o filme trabalha muito com a questão da sombra e da noite. Assim, O Terceiro Homem não é apenas mais uma estória contada em preto-e-branco, como são tantos filmes antigos, mas um filme que utiliza do preto-e-branco como elemento criativo e necessário dentro do filme. É comum ver cenas noturnas onde a sombra dos personagens se projeta por toda uma rua ou pelas paredes de um túnel, indicando a importância que ele adquire naquele momento. Em outras, pode-se ver algum personagem montando tocaia em meio às sombras de alguma rua noturna de Viena, totalmente imerso na escuridão, revelando-se em um só momento quando se coloca à frente e é banhado pela luz de um poste, criando um efeito marcante através desse jogo de sombra e luz. Outro destaque fica para os ângulos usados. Em alguns momentos, os ângulos são simétricos, dando a ideia de ordem e beleza (como na majestosa cena final), e, em outros, abusam do artifício conhecido como "ângulo holandês", que é quando a câmera é "entortada" cerca de uns 10° denotando alguma intensidade emocional ou confusão. A construção das cenas é muito delicada e o resultado final é, em termos de cinema, digno de admiração.

Exemplo do uso do ângulo holandês no filme

O destaque das atuações fica para o lendário Orson Welles, conhecido pelo episódio radiofônico de A Guerra dos Mundos e pela direção de uma obra maior do cinema mundial: Cidadão Kane. Orson Welles interpreta Harry Lime que, apesar de não ser o protagonista, tem papel tão importante quanto, pois é ele que acaba por guiar o desenvolvimento da trama.

Orson Welles em papel no filme

O Terceiro Homem tem um ritmo muito próprio. Apesar de pertencer ao gênero noir e apresentar todo esse jogo com as sombras e ambientes noturnos, o filme tem um andamento rápido e repleto de humor. A trilha sonora tem um jeito lúdico e animado que contrasta com a temática noir, mas que harmoniza com o senso de humor constantemente derramado nos diálogos. Essa oposição entre os homens de sobretudo em noites vienenses, o mercado negro e a intriga e a trilha sonora divertida e as piadas constantes gera um clima de excentricidade no filme. A minha impressão por várias vezes foi de estar diante de um filme com uma pitada levíssima de David Lynch.

Outra característica interessante de O Terceiro Homem é o desenvolvimento dos fatos. É como se vários acasos do destino fossem jogados ali no destino do protagonista, uma série de coisas improváveis e conspirações que brincam diante da sua tentativa de solucionar o caso. Em O Terceiro Homem, o escritor Holly Martins é levado pela torrente do destino; o caso vai se desvelando à sua frente, como se ele não tivesse escolha senão seguir o rumo daquele mistério. A cena final exemplifica isso mais que tudo; o personagem some diante de um destino sobre o qual tem pouco ou nenhum controle.

É um filme altamente recomendável para quem gosta de cinema, dos filmes noir ou é meramente curioso sobre como era o cinema de outros tempos. Inclusive, terminada a sessão do cineclube, contei ao meu pai (que tem 75 anos) sobre o filme que havíamos assistido e ele contou que em nossa pequena cidade esse filme estreou no cinema em 1951 com direito a casa lotada! Quem diria que 67 anos depois da exibição desse filme em União da Vitória, nós, jovens, estaríamos nos reunindo numa dessas antigas construções estilo art decó da prefeitura (que têm elas mesmas algo de noir) para ver e debater o mesmíssimo filme? O cinema é incrível!

Obs: Apesar de a maior parte das observações sobre o filme serem pessoais, algumas são frutos do debate gerado no Cineclube Agulheiro 310 após a exibição do filme.

Fonte 1
Fonte 2
Fonte 3
Fonte das imagens

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