Acolhimento Institucional - a criança em desamparo

in #pt6 years ago

Eu costumava achar que as crianças que iam parar nos antigos orfanatos (hoje se chamam casa-lar e possuem diferenças estruturais e operacionais substanciais) eram realmente órfãs de pais falecidos ou então que haviam sido totalmente rejeitadas por todos os membros de sua família. Hoje sei que, além das situações anteriores, elas também podem ser "órfãs de pais vivos" e também que podem ser institucionalizadas mesmo tendo pais ou parentes que brigam na justiça pela sua guarda. Esses casos são bastante comuns, inclusive.

Acompanho de perto famílias que continuamente violam os direitos de seus filhos até perderem a guarda dos mesmos, mesmo tendo sido orientadas e recebido diversos tipos de auxílios para tentar garantir o mínimo de dignidade e segurança aos seus pequenos. São famílias que por motivos diversos não conseguem garantir saúde, educação, segurança alimentar e até mesmo integridade física e psicológica em alguns casos. Nem por isso seria correto dizer que não amam seus filhos. Às vezes amam tanto ao ponto de desmoronar de vez, quando o Estado lhes toma suas crias. São os momentos mais tristes do meu trabalho, isso porque nunca estou no instante exato em que isto ocorre, mas faço o atendimento posterior imediato às mães e pais em total desespero. Posso imagina a dor de voltar para casa, tão silenciosa e vazia.

As crianças, por outro lado, sofrem com a nova rotina e a fragilização do vínculo parental. Sentem saudades, choram, se revoltam. Não dá para saber o que é pior. Sinceramente eu não sei. Que fiquem com os pais e passem fome e sejam privadas de outras necessidades básicas, ou que tenham essas necessidades satisfeitas mas que tenham rompidos seus laços cotidianos de amor e afeto. Porque amar também é proteger e cuidar, mas nestes casos nos deparamos com uma classe de amor que não cuida e protege da forma que entendemos ser o correto, o que extrapola a nossa compreensão.

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Para chegar ao ponto de haver uma ordem judicial de acolhimento, geralmente a família já vem sendo acompanhada há muito tempo (anos) porém os pais não conseguiram se organizar para cessar as violações de direitos a que estão submetendo seus filhos, e os mesmos estão cada vez mais em risco ou tendo seu desenvolvimento progressivamente prejudicado. Existe também um desinteresse ou limitação por parte da família extensa. A iminência de uma situação em que a vida e integridade das crianças esteja em risco leva o Estado a se apropriar da guarda das mesmas.

Para não chegar neste ponto, nós da assistência social, tentamos várias estratégias junto à família. Marcamos consultas, levamos as crianças aos médicos, encaminhamos os pais para tratamentos diversos, visitamos a família, buscamos apoio da família extensa, da escola, da vizinhança. Corremos atrás de benefícios diversos para amenizar algumas vulnerabilidades. Fazemos atendimentos individuais e familiares onde montamos juntos um plano de ação com as devidas orientações. Nos reunimos com a rede intersetorial para integrar de forma concomitante as ações de todos os setores e oferecer uma ampla rede de apoio à família. Visitamos a residência da família para monitorar e orientar seus membros. Enfim, o que cada caso demanda e nos é possível fazer. E algumas vezes o nosso possível não é o suficiente.

Se essas crianças já sofriam nas mãos das famílias, acontece então uma segunda forma de violência, agora institucional. São arrancadas do seio familiar.

Logo após o acolhimento a família é sempre a primeira opção a ser trabalhada para resgatar a guarda das crianças. Geralmente a família de origem e a família extensa são acompanhadas de 6 meses a no máximo 2 anos (depende de cada caso, depende muito da idade da criança, depende de um monte de coisas, até porque existem os casos onde ninguém quer as crianças de volta), para que consigam se organizar e reaver a guarda, ou então o poder judiciário parte para a segunda opção que é a destituição. A partir deste momento os pais perdem de forma definitiva a guarda sobre seus filhos, e eles passam a estar disponíveis para a adoção.

E aí, se a criança não é um bebê da pele clara, o desamparo muito provavelmente será tatuado de forma definitiva em seu coração. Até porque mesmo que ela não esteja dentro destes critérios e consiga ser adotada, existe um índice alto de pais adotivos que se arrependem e devolvem a criança. Mais uma marca indelével em sua jornada.

"Só sabe quem nunca teve uma família
Que ela vale muito mais que mil mansões com mobílias
Daria contente o meu último suspiro
Se um dia ouvisse a frase: Eu te amo, filho" Eduardo

Às vezes me questiono se o acolhimento institucional não deveria ser somente para casos extremos, de orfandade e abandono de incapaz. Mas também me pergunto se a negligência e os maus tratos também não são casos extremos de falta de dignidade, e que dizer que está tudo bem em criar os filhos assim, seria tão cruel quanto deixá-los à própria sorte. De fato, em ambos os casos estão à própria sorte. E com sorte, em algum lugar aprenderão a dizer eu te amo.

Sobre o perfil escolhido para adoção é verdade que existe uma preferência, mas é verdade também que a burocracia estatal impede e torna moroso muitos processos de adoção movidos por casais que não necessariamente fazem questão de um padrão específico.

Uma vida de espera no desespero de se ter algum tipo de amparo. Onde quem deveria te acolher são justamente aqueles que instituem a sua rejeição. Revolta pouca é bobagem.


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