Meu velho pai

in #pt7 years ago
É difícil falar sobre meu pai, por que eu não sei ao certo o que sinto a respeito dele. Não que eu não sinto amor por ele ou qualquer coisa do tipo. Tenho um amor muito sólido pela sua pessoa, quanto a isso não restam dúvidas. Mas quero dizer a respeito de quem ele se tornou, a respeito do rumo que ele tomou na vida e que provavelmente não se deu conta, simplesmente foi com a maré (o que muitas vezes pode ser ótimo, principalmente quando você tem remos para remar contra, caso venha a precisar, ao notar que o lado que está sendo levado não é bom).

O fato é que meu pai passou pelo menos 30 ou 40 anos de sua vida tendo como foco principal o álcool.

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Desde antes de eu nascer. Minha mãe lembra bem o dia em que ela sentiu um arrepio na coluna, como se aquele ponto marcasse um episódio que se iniciava. Foi quando ele tomou pela primeira vez uma caipirinha na casa de um casal de amigos, e na volta para casa falou: -Nossa, gostei muito dessa caipirinha. Vou comprar pra fazer em casa amanhã.
Desde então, todos os dias por mais de 30 anos ele se embriagou, em casa, em silêncio, absorto em sua própria realidade, sua mente. O velho barreiro (um tipo de cachaça brasileira clássica) se tornou seu símbolo, seu amante particular.

Nos meus olhos de criança, só passei a perceber atitudes de embriaguez dele quando já criava consciência, pois criança pequena não percebe certos detalhes, graças a Deus. Lembro dele apoiando o copo de cerveja em cima de um desenho que eu acabara de fazer dos cavaleiros do zodíaco e manchando, ele apenas pede desculpa e mergulha na embriaguez. E eu lembro daqueles olhos, o olho de um alcoolizado. Um brilho vago meio sem fundo como se olhasse para a tela mas apenas olhasse, a televisão é mero objeto de foco estético, pois por dentro apenas regozija-se em um prazer de amortecimento e distância. Ia dormir bêbado todos os dias, todos os dias.

Até que minha mãe falou: -O velho barreiro ou Eu e o Thomas?
Ele apenas deu uma risada de escárnio como se duvidasse que minha mãe fosse fazer qualquer coisa, ignorou o assunto (pois quando se ignora ele deixa de existir). Com meu consentimento, minha mãe encontrou uma casa para alugar, planejou tudo com muita força e determinação e fomos embora. Fomos embora daquele mundo estranho e obscuro de uma pessoa que vegeta em seu próprio cosmos de torpor e ausência. Por que junto com o álcool, vinha a mais pura ausência. Meu pai até fazia as coisas comigo, tínhamos uma relação ótima de pai e filho, nunca foi violento e nunca faltou com nada, mas notava-se uma limitação, a relação ia até onde cabia. Só percebo tudo isso agora.

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Depois da separação teve sua fase de euforia, mas depois veio a aposentadoria, depois então, fechou-se. Completamente. Todas as janelas da casa sempre fechadas. Também pelo trauma de ter sido assaltado. Agora só o álcool e ele, na casa escura e fechada, nunca abria nada, nem cortinas, as luzes não acendia para economizar, porém, levantava de manhã e sentava no sofá, só saia do sofá para ir dormir (um pouco de tarde e o resto de noite), tinha hábitos de horários trocados, acordava as três da manhã, bebia, sempre bebia. Sempre bebia. Seu hábito de fumar tornou-se muito mais grave, a ponto de fumar cinco carteiras por dia de hollywood vermelho. Tornou-se um misantropo. Não saia nem para comprar comida. Suas pernas foram se atrofiando devido ao pouquíssimo uso, além da falta de vitamina B causada pelo alcoolismo.

Nessa fase, eu já adolescente, tornei-me muito mais próximo e consciente de sua situação. Porém, definitivamente sem poder fazer muito para lhe ajudar. Cheguei ao ponto de atender seus pedidos, por que eram feitos com muito sofrimento de: -Por favor, compra pra mim o velho barreiro, não consigo ir até lá.
Passava semanas comendo apenas uma coxinha de almoço, seu único alimento. Mesmo com todo o tipo de discurso tanto de mim quanto de minha mãe, pois ela também nunca deixou ele na mão, sempre manteve-se por perto e ajudando em tudo que fosse necessário.
Vivia tão inebriado em seu próprio universo distorcido e numa constante viagem errada que, logo que eu soube que meu tio (seu irmão) havia morrido fui lá conversar com ele, e ele com aquele olhar vago me fala: -Não sei se eu sonhei ou se aconteceu, mas me ligaram me dizendo que meu irmão havia morrido...
Isso já fazia dois dias. Eu confirmei com ele e perguntei se ele foi no velório. Ele disse que não, por que pensou que foi um sonho.

Sim. Era nesse nível que ele estava raciocinando nessa fase da vida. Outra vez eu presenciei uma cena depressiva, onde cheguei meio de surpresa (ia dia sim dia não, e naquele dia era um dia não), ele estava completamente bêbado sentado, com o buraco negro nos olhos, assistindo tv. A marmita que ele pediu chega, o rapaz atencioso entrega nas mãos, dentro de casa (coisa de cidade pequena), olho pelo canto da sala, meu pai pergunta quanto: 20 reais. Ele tira da carteira umas 8 ou 9 notas de 50 reais, olha, olha, não entende nada, joga todas as notas no chão e fala: -Pegue aí, faz favor, não consegui achar.
O rapaz sem jeito explica que não tem nova de vinte ali, meu pai fica estático, o rapaz, já acostumado diz que vai deixar haver para as próximas comidas. Já era acostumado com esse tipo de episódio.

Chegou um dia onde eu cheguei visita-lo e sua diarista para fora da casa batendo na porta. Ele não atendia, chamo, chamo e só escuto uns resmungos. Olhamos pela fechadura e ele está caido no chão, se arrastando pra um lado e pro outro. Não consegue abrir a porta, vou guiando e falando com ele pedindo pra ele se esforçar e vir até a porta abrir. Muito tempo depois ele consegue abrir o trinco e entro, levanto ele, coloco no sofá. Está totalmente perdido, distante. Não consegue falar direito, está gelado, os olhos se mexem sem rumo, pensei que havia tido um derrame, algo do tipo. E ali. Naquele exato momento, acabou sua história com o álcool, não por que ele quis, mas por que não teve outro jeito. E ele sentiu que não queria morrer ainda.

Meu pai ficou internado quase vinte dias, na primeira semana, amarrado na cama do hospital gritando, berrando fora de si, tendo alucinações de abstinência, via a enfermeira e dizia que ela tinha um cigarro atrás da orelha e não queria dar pra ele, via garrafa de pinga pelo chão, mandava minha mãe pro inferno, chamava de puta (sim, ela ficou quase 20 dias dormindo lá pois não podia deixar ele sozinho, regras do idoso).

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Enfim, essa fase passou. Ele foi morar conosco depois de todo o inferno. Por que simplesmente seria impossível deixa-lo voltar a morar sozinho, não só pelo risco de voltar a fumar e beber, mas por que ele não estava conseguindo fazer nada, demorou meses para recompor os movimentos e o raciocínio (que já não era bom desde bem antes). Mas chegou um momento onde ele estava forte e lúcido o suficiente (extremamente grato por estar livre do alcool e pela nossa ajuda e cuidado) e decidiu-se por tentar voltar a morar sozinho e ter sua liberdade. Jurou jamais beber novamente nem fumar. Mas voltou a fumar. E depois, parou novamente, por que viu que aquilo estava degradando cada vez mais ele. Agora, mais e mais fica nítido que seu pulmão estava se deteriorando. Descobriu um efizema pulmonar. Largou o cigarro definitivamente. Mas houve um momento em que se tornou inviável deixa-lo morando sozinho, os anos passaram, estava muito debilitado, fragilizado. Seu raciocínio ainda era mais ou menos, mas não tinha autonomia para andar mais, não tinha fôlego nenhum por causa do pulmão e agora teria que operar seu olho, um descolamento de retina. Cirurgia complicada em outra cidade, viagens e mais viagens com o ônibus do sus, eu levando ele, madrugada, frio. Depois dias sem enxergar direito.

Do momento onde ele foi morar comigo e com minha esposa e minha filha para o dia de hoje, pudemos ver sua degradação avançando cada vez mais. Poderia dizer que é a idade, mas ele só tem 68 anos. Idoso? Conheço mais de 10 amigos que trabalharam com ele com 10 anos a mais que fazem corrida, exercício, participam da terceira idade, são ágeis mentalmente, convivem socialmente, etc. Meu pai teve o azar de uma vida mal vivida intercalada com doenças que são resultados de seus hábitos.

Suspeitamos hoje de um possível Alzheimer, quem sabe seja só senilidade, mas avançada pelo álcool. Não sei.

O que sei é que hoje, minha mãe largou a vida dela em outra cidade para vir cuidar dele, por que ela acha importante cuidar dele nesse momento complicado. Ele praticamente desaprendeu a limpar a própria bunda. Ela está se virando como pode.

A vida não é fácil. Mas quando você fode com a vida (durante a vida inteira) provavelmente ela vai ser muito mais difícil quando você estiver velho e debilitado. Eu espero sinceramente ser lúcido e funcional, ágil, útil, quando tiver esta idade. É uma injustiça contra si mesmo e contra tudo desperdiçar a oportunidade de estar aqui vivo. Sinceramente não o culpo, mas fico triste por ele não ter percebido (lá atrás) para onde estava indo...

No meio de tudo isso, eu tento manter a lembrança de que ele era muito foda em matemática, tinha um conhecimento cultural apurado, tem uma memória fotográfica, decorava placa de carros dos amigos ou mesmo número da matrícula dos colegas de trabalho. Era uma pessoa muito inteligente, de conhecimento enciclopédico mesmo.
E de certa forma penso que ele tem usado esse seu atual momento de vida como uma recuperação de tudo que não deu certo, deleitando-se como pode da última idade.

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Esse artigo contém fotos pegas na internet de homens idosos, com sua pele marcada pela idade, nada expressa tão bem a experiência de vida quanto as rugas na pele.

Sort:  

Caramba, que história! Tive um tio-avô com problemas com a bebida, mas nem se compara. Imagino a dificuldade que foi para vocês lidarem com isso. E parabéns por acolhê-lo, apesar de tudo ;)

Sim, todos temos histórias simples e profundas. Apenas resolvi contar :)
Nunca deixei ele de lado, não por qualquer questão ética ou social, mas simplesmente por que meu relacionamento com ele é sincero, é meu pai, o amo apesar de tudo, mas não é fácil.

Parabéns, seu post foi votado e compartilhado pelo projeto Brazilian Power, cuja meta é incentivar a criação de mais conteúdo de qualidade, conectando a comunidade brasileira e melhorando as recompensas no Steemit. Obrigado!

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Acredito que não deve ter sido nada fácil partilhar algo tão pessoal.. Até pela necessidade de recordar todos aqueles momentos.. E agradeço te por isso.. Tb me fez recordar alguns episódios.. Para além disso, e de me identificar com muito do que escreves, a forma como o fazes é sublime, depois de começar a ler, tenho de ir até ao fim... Abraço

Obrigado, @aleister! Fico muito feliz que goste de minha escrita.
Falar sobre coisas tão sensíveis e pessoais é forte, mas não doloroso, de certa forma tenho uma facilidade para esse tipo de texto confessional, acho que quanto mais sincero (mesmo que mascarado, como muitas vezes é feito na literatura) mais tocante e interessante é. :)
Obrigado e grande abraço!

Álcool é terrível já perdi um tio por causa da bebida, acredito que ele seja tao terrível como outras drogas e mesmo assim tem propagandas até mesmo em filmes incentivando o consumo.

É muito cultural né cara, e legalizado desde sempre. Como um amortecedor da sociedade.

Parabéns, @thomashblum, pelo excelente relato, parabéns pela coragem, parabéns por não ter o ter abandonado e parabéns pela partilha. Bem haja meu amigo.

Muito obrigado, @ginga! Abraço!

Eu queria poder ter palavras agora, Thomas. Mas ficou difícil porque parece que estou vendo o futuro do meu teimoso pai aqui, no teu post.
Sujeito teimoso, orgulhoso e auto-suficiente. Ele realmente acha que tem domínio da situação, mesmo vendo que o irmão dele partiu por causa do álcool.
Enfim... Teu post me fez pensar, mas do que pensava, e perceber que, por mais que façamos, infelizmente a mudança tem que partir da pessoa. A gente conversa, avisa, dá exemplos de pessoas que seguem o rumo da bebida e mesmo assim... Vem aquela velha mania na cabeça de achar que só acontece com os outros, mas não com ele. Porque ele tem domínio da situação. Mas não tem.
Bom... Desejo força e paciência a sua mãe e saúde ao teu pai.
Forte abraço.

estou pedindo muita ajuda divina e amor no coração :)

Pois é amiga, é bem complicado. Lembro que tentei inúmeras abordagens, minha mãe sempre falava com ele, mas não adianta, só partindo de dentro. E infelizmente, muitas vezes só acontece essa mudança depois de um problema grave, como a situação em que meu pai ficou, não muito longe de morrer, por desnutrição, por excesso de álcool, por colapso na saúde mesmo.
Agora paga o preço por isso, apesar de livre de qualquer vício, sua mente não é mais a mesma =\

Saúde para o seu pai também! Tente não se desgastar muito com isso, por que cada escolhe seu caminho, mas se tiver proximidade com ele, não perca a oportunidade de se abrir, sem impor, apenas falar sobre sua preocupação com isso. Abraço!

Confesso que ele deixa uma borda bem larga de distância quando tento entrar nessa parte. Meu pai é amoroso e está sempre disposto a fazer qualquer coisa pelos filhos, mas deixa claro que a vida é dele e ele sabe o que está fazendo. Então fica bem difícil conversar, sabe...
Enfim... Recorro a esperança de que ele enxergue e aceite o que está vendo pra mudar rápido.

@thomashblum E ainda há quem subestime o poder destrutivo do álcool, heim?

Teu relato é muito sensível e bem escrito. Deve ter sido doloroso pra tu relembrar essas situações, mas ao mesmo tempo... Conseguir escrevê-las, evidência que você superou tudo (ou quase tudo).

Obrigado amigo, como comentei ali em cima, de certa forma não tenho dificuldade em me abrir e escrever coisas fortes e emocionais, por que acho que essas, por serem mais intensas, merecem ser escritas. Pode ser doloroso sim, mas acho de certa forma importante por pra fora.

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