Senhora do Medievo | Por que não me fizeste nascer homem? | #4

in #pt6 years ago (edited)

A Senhora do Medievo de hoje retorna à Christine de Pizan (1364-1430)... Se você não sabe ou não se lembre quem foi ela, eu fiz esses dois posts aqui: parte 1.1 e parte 1.2, logo que cheguei por aqui.


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Quem disse isso?? Você pode estar se perguntando...

"Ah, Deus! Como isso é possível? Como acreditar, sem cair no erro, que tua infinita sabedoria e perfeita bondade tinham podido criar alguma coisa que não fosse completamente boa? Não é verdade que criaste a mulher com um deliberado propósito. E, desde então, não lhe deste todas as inclinações que gostarias que ela tivesse? Pois, como seria possível teres te enganado? E, no entanto, eis tantas acusações graves, tantos decretos, julgamentos e condenações contra ela! Eu não consigo entender essa aversão. E, se é verdade, meu Deus, que tantas abominações abundam entre as mulheres, como muitos afirmam – e, como tu mesmo dizes que o testemunho de vários garante a credibilidade –, por que não deverias pensar que tudo isso seja verdade? Que pena! Meu Deus! Por que não me fizeste nascer homem para que minhas inclinações estivessem a teu serviço, para que em nada me enganasse, para que eu tivesse esta grande perfeição que os homens dizem ter? Mas, como tu não quiseste, como não estendeste tua bondade até mim, perdoe minha negligência ao te servir, Senhor Deus, e não te descontente, pois o servidor que menos recebe de seu senhor, menos é obrigado a servi-lo." (Christine de Pizan)

Essa é citação acima, faz parte do início do Livro da Cidade das Damas de Christine de Pizan, cuja tradução brasileira foi publicada por Luciana Deplagne. Christine escreveu essa obra em 1402, o que em si já deveria despertar inúmeros questionamentos.

O medievalista José Rivair Macedo destaca que Christine de Pizan “teve clara consciência de si própria e de sua condição de poetisa e escritora. Interessava-se pela organização de seus livros, pela direção dos copistas envolvidos na preparação dos manuscritos, pela ilustração de cada um deles" (MACEDO, 2002, p.93).

Curiosa foi sua trajetória, por não ser nem nobre, nem se dedicar a alguma ordem religiosa, o que eram os casos mais comuns de pessoas que escreviam durante a Idade Média, principalmente entre as mulheres.

A indagação citada acima - "Ah, Deus! Como isso é possível?" - compõem um das demonstrações publicamente do posicionamento de Christine sobre a questão feminina. Iniciou quando ela envolveu-se em uma batalha literária contra um dos autores do “Roman de la Rose” – Jean de Meung. Esse autor ao escrever a segunda e maior parte, completando a obra, havia modificado o sentido do poema, de uma concepção cortês do amor idealizado para uma glorificação da sedução.

Gentis mulheres, burguesas e donzelas, e todas as demais, requerem humildemente nosso socorro. Reclamem as ditas damas, de grandes males, infâmias, difamações, traições e ultrajes muito graves, de falsidades e outros erros, que recebem a cada dia dos desleais que as desonram, difamam e desprezam. (Christine de Pizan)

Quantas escritoras mulheres medievais você já ouviu falar?

Desde que iniciei minha formação de historiador e pesquisador dos estudos medievais me perguntei porque não conhecemos mulheres que escreveram durante a Idade Média. Mesmo antes de ter contato com as obras de Christine de Pizan, não estava convencido do senso comum, de que apenas homens escreveram durante quase mil anos.

Foi então, já nas primeiras fases da graduação, ao conectar estudos de gênero aos estudos medievais, que percebi o que ocorria na escrita da história (na historiografia). Havia um silenciamento das mulheres na história. Silenciamento, que por muitas vezes se camuflava com a argumentação de que as mulheres sempre foram citadas nas principais publicações de história. E como eram citadas? Eram mencionadas como mãe de fulano, irmã de beltrano, esposa de ciclano, cunhadas, primas, amantes e a lista continua...

Onde eu quero chegar? Quero chegar em partes, no que motivou Christine de Pizan a escrever um livro em que ela constrói uma cidade, A CIDADE DAS DAMAS!

Por que Christine construiu a Cidade das Damas?

Para isso, sugiro que a gente olhe novamente para a citação que abri esse post. Vamos juntos tentar olhar melhor cada parte dele?

"Ah, Deus! Como isso é possível? Como acreditar, sem cair no erro, que tua infinita sabedoria e perfeita bondade tinham podido criar alguma coisa que não fosse completamente boa?

Partindo da premissa católica de incapacidade de Deus em cometer erros, Christine começa a compor sua argumentação.

Não é verdade que criaste a mulher com um deliberado propósito. E, desde então, não lhe deste todas as inclinações que gostarias que ela tivesse?

A mulher como criação intencional divina, bem como todas as características as quais as mulheres receberam, deriva da vontade de Deus, logo não é falha.

Pois, como seria possível teres te enganado? E, no entanto, eis tantas acusações graves, tantos decretos, julgamentos e condenações contra ela!

Aqui Christine, insinua que aqueles que acusam as mulheres, estão acusando à Deus.

Eu não consigo entender essa aversão. E, se é verdade, meu Deus, que tantas abominações abundam entre as mulheres, como muitos afirmam – e, como tu mesmo dizes que o testemunho de vários garante a credibilidade –, por que não deverias pensar que tudo isso seja verdade? Que pena!

Aqui, na minha interpretação da obra como um todo, percebo certa ironia de sua parte. Principalmente com o que segue:

Meu Deus! Por que não me fizeste nascer homem para que minhas inclinações estivessem a teu serviço, para que em nada me enganasse, para que eu tivesse esta grande perfeição que os homens dizem ter?

QUase não tenho dúvida de que nesse em que afirma que os homens não se enganam e que tem grande perfeição, da qual eles mesmos dizem ter, não passa de uma forte ironia da parte de Christine.

Mas, como tu não quiseste, como não estendeste tua bondade até mim, perdoe minha negligência ao te servir, Senhor Deus, e não te descontente, pois o servidor que menos recebe de seu senhor, menos é obrigado a servi-lo."

Finalizando seu argumento, utiliza da tradição medieval do pacto vassálicos, em que há uma construção de equilíbrio cosmológica entre o Senhor e seu vassalo. Cujo Senhor tem obrigações para com o vassalo, tanto quanto o vassalo tem obrigações para com o seu Senhor. A não manutenção do pacto por qualquer uma das partes, consequentemente resulta e não obrigação pela outra parte. É assim que Christine afirma que não teria nenhuma obrigação de servir à Deus, caso ele a tenha feito perfeita, como fez os homens. Afirmação que descontrairá durante todo o livro da Cidade das Damas.

Agora, como tem sido o costume ultimamente, deixo uma pergunta/sugestão para iniciar a discussão:

Como poderia Christine de Pizan, que viveu entre os séculos XIV e XV, contribuir para as mulheres que vivem no século XXI?

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Referências Bibliográficas

  • PIZAN, Christine de; DEPLAGNE, Luciana E. de F. Calado. A Cidade das Damas. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2012.
  • MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. 5a ed. ed. São Paulo: Contexto, 2002.
  • KARAWEJCZYK, Mônica. Christine de Pizan: uma filósofa no Medievo?! IN: PACHECO, Juliana (Org.). Filósofas: a presença das mulheres na filosofia. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2016.
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