O Caminho Português de Santiago # in: " O mapa de autoestrada"

in #pt6 years ago (edited)

O telemóvel vibra em direção à beira da mesa-de- cabeceira e deito-lhe a mão, mesmo a tempo duma boa queda e de desligar a terceira chamada sucessiva daquele número incomodativo. Como o são todos os números dos quais me liga qualquer ser vivo do planeta, porque estes são tempos em que não quero nem consigo falar com ninguém.
Todavia pressinto um alarme mental a retinir e acordei com o meu íntimo a agitar-se dum lembrete imperceptível, há vários meses latente, do ideário de peregrinar em busca de respostas que me resgatem deste vazio existencial.
Naquele dia regado da chuva miudinha de novembro, a vaga ideia em poucas horas se tornou um propósito definido e que se impôs com tanta urgência, que em pouco mais de uma semana teria tudo preparado. O Caminho de Santiago tinha começado.
Adquiri cadernetas de peregrino, vestuário apropriado, mochilas e botas de caminhada, vasculhei toda a informação que pude reunir e marquei férias e as passagens de avião para o Porto com o objetivo de percorrer parte do caminho Português, a partir de Valença do Minho.
Tudo a tempo de anunciar, à guisa de presente de Natal, que no ano jubilar da Misericórdia seríamos peregrinos a Compostela e lá chegaríamos, fosse como fosse, no dia da festa do Apóstolo, para os festejos ecuménicos e aos quais acrescentaríamos os da nossa superação individual.
O que mais nos marca no caminho de Santiago é o espírito de peregrino, a indómita vontade que tudo supera, o seu despojamento e a genuína disponibilidade para a revelação da busca pessoal.
Ser um peregrino não é uma circunstância, é um estado de alma nascido da necessidade de respostas que acarreta uma decisão de submissão a uma experiência física e mental no limiar da insuportabilidade. Por isso, acreditem que até mesmo quando não conseguimos definir a pergunta que nos impele, o espírito sabe.
A minha pergunta era uma dessas indefinidas à partida - e tal como era de esperar, foi-se revelando à medida e na dimensão do percurso que todos os dias construíamos.
O que é outro deslumbramento, pois ali percebermos que somos co-autores da nossa experiência pessoal todos os dias da nossa vida. Esta constatação liberta-nos da vitimização e das gaiolas imaginárias com que constantemente nos impedimos de mudar os padrões que nos fazem sofrer.
Houve dias em que quase desistimos, esgotados de cansaço, de cãibras, de dores no corpo moído e em que os pés ensanguentados e com bolhas pareciam incapazes de prosseguir. E foi quando descobrimos que a nossa capacidade de resistir à dor física é incalculavelmente superior ao que imaginamos.
Houve dias em que duvidámos do nosso querer, da fé em alcançar a meta estabelecida e do nosso discernimento. E foi quando descobrimos que nada consegue aniquilar um propósito estabelecido por uma vontade nobre quando ela serve genuinamente a nossa ascensão espiritual.
Houve troços de caminho de solitude e introspeção, em que cada um se entregou às suas dúvidas e inquietações. E foi quando conseguimos deixar alguns fantasmas pelo caminho.
Houve dias de partilha, das dificuldades, dos segredos e das pequenas grandes revelações que o trajeto nos trouxe. E foi quando nos maravilhámos com a autêntica e dinâmica descoberta de quem nos é tão íntimo.
E ao longo de mais de cem quilómetros desenvolvemos e apurámos a capacidade de captar aquela linguagem que só a intuição do peregrino consegue ler: os sinais do caminho. Foi quando compreendemos que a vida fala conosco de todas as maneiras, desde o vento que subitamente se levanta, até às mais simples coisas, que surgem quando menos se espera e mais se precisa. Tudo com a simplicidade e a acuidade do acerto, no tempo e no espaço, duma existência desapossada do ego.
O pós- peregrino regressa mais consciente do seu verdadeiro poder pessoal, mais leve e desapegado de tudo o que o impede de disfrutar a essência da vida, mais resiliente, atento e clarividente. Regressa mais indulgente consigo e com o próximo e com renovada confiança no processo da vida.
O único problema, é que este estado de alma não dura para sempre, pois no retorno à vida que temporariamente deixámos para trás, mais cedo ou mais tarde, somos tragados pela voracidade das circunstâncias que nos rodeiam.
Mas dizem que as lições do caminho perduram em nós, também elas como sementes prontas a germinar logo que convoquemos a alma do peregrino, porque essa jamais nos abandona.
Oxalá…

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