Amigas

Clara, lentamente sobe as escadas após um tempo que parece décadas, mas não, são apenas seis semanas desde que tudo aconteceu. E sim, digo tudo porque foi tudo o que não poderia acontecer se deu em um espaço de dois dias. Calma, eu vou começar do início.

Clara era uma menina estudiosa, jeito de nerd mesmo. Passava as horas depois da escola revisando as matérias de aula. Quando não estava estudando estava trancada no quarto lendo. Mas não é só por isso que ela tinha esse apelido, ou essa fama, como queiram.

Seus cabelos loiros até um pouco abaixo do ombro, meio enrolados, que ela trazia quase sempre amarrados em um rabo de cavalo, seus olhos negros, grandes e tristes, seus óculos quadrados, escondiam nela uma beleza que poucas pessoas tiveram a sorte de reparar.

De estatura mediana, magra, não tinha o atributo que os garotos escolhem para eleger a menina mais popular da escola. Seu corpo não se desenvolvera como o das suas amigas, e ela se sentia um pouco incomodada com isso. Ficava de longe, com seu livro na mão, olhando para as colegas sempre rodeadas de garotos que não faziam outra coisa além de bajula-las. Seu sonho era ser como uma dessas meninas.

Pode-se dizer também que Clara não se ajudava na hora de se vestir. Suas roupas largas e simples escondiam o seu corpo, que não era feio, muito pelo contrário. Dizia que se alguém se interessasse por ela algum dia, seria pela sua personalidade e não pelos seus peitos.

Sua vida social era fraca, quase não existia. Não tinha quem a convidasse para o cinema, para um passeio, e poucas foram as tentativas de convite, pois todas elas eram de pronto negadas pela desculpa que tinha que estudar, ou que já tinha programa, mas a realidade é que ela tinha medo de não saber o que fazer diante de um garoto.

Sua vida começou a melhorar depois que uma garota nova chegou na escola. Gostos parecidos de livros fizeram com que logo se tornassem amigas. Jessica era o oposto de Clara, gostava de sair, se divertir, era bonita e logo fez os olhares dos meninos recaírem sobre si.

Logo ela convenceu Clara a sair com ela e alguns amigos, tinham marcado cinema. O filme? Acho que isso não importa, o que interessa dizer é que a vida da garotinha meiga e envergonhada nesse dia começa a mudar.

O tempo que se passou foi de mais festas, saídas, programas entre os amigos mais fodásticos que alguém poderia querer. “Os quatro”. Era assim que se chamavam e cabe dizer que nunca personalidades tão diferentes havia dado certo na vida de alguém. A nerd, a gostosa, o gordo e o atleta. Sei que isso parece até coisa de filme adolescente norte americano, mas não é. Aconteceu mesmo e ainda acontece por aí. Só que ninguém tem vontade de contar, e eu, como não tenho mais nada de interessante pra fazer estou contando.

Enfim, por mais que Clara agora fosse uma menina popular, não tinha esquecido os livros, nem a escola e muito menos havia perdido o foco de sua vida, formar-se em nutrição. Registro aqui que ainda na sexta série, quando em uma aula falou que queria ser nutricionista, virou piada na sala de aula com os colegas dizendo que ela queria isso pra se ajudar a se nutrir, pois era muito magra e possivelmente desnutrida. Sei que é cruel tornar isso público, mas é necessário para que entendam o final.

Avancemos no tempo alguns anos, sendo mais preciso, sete anos. Nesse tempo Clara terminou o secundário e se formou em Nutrição, e pelos seus próprios méritos. Contato com os outros três que formavam “Os quatro”, somente por telefone e redes sociais. Com a Jessica, ainda trocava cartas. Mandavam fotos uma para a outra, pois a guria fora embora da cidade ainda no ens. Médio.

A saudade era tamanha que todos os anos, Clara arrecadava dinheiro nas festas de família para poder pagar a passagem e ir ver a amiga. A amizade das duas era verdadeira, brincavam as duas que não era uma amizade pra vida inteira, era pra eternidade da morte.

Certo dia, enquanto caminhava na calçada, de repente Clara sente um calafrio, um arrepio que desce por toda a espinha e sente as pernas como se tivesse uma tonelada de chumbo. Senta no primeiro banco que consegue encontrar e ali se deixa ficar por um tempo interminável, e quando consegue levantar, é apenas pra conseguir um taxi para voltar pra casa.

Ao abrir a porta de casa, Clara vê sua mãe sentada no sofá com as mãos no rosto e sua irmã mais velha escorada num canto olhando pela janela com uma expressão vazia.

Sem coragem de perguntar o que aconteceu, senta ao lado se sua mãe e afaga seus cabelos esperando que alguém tome a iniciativa de falar.

  • Clara, minha filha! Começa a mãe entre soluços. -Recebemos uma ligação da mãe da Jessica a algum tempinho, ela queria falar com você.

  • O que aconteceu mãe? Porque a senhora está chorando?

Novamente a mãe da garota se esconde entre as mãos e não consegue mais falar. Quem fala agora é sua irmã.

  • Temos algo pra contar, mas precisamos que você seja forte, mais forte do que a gente! Diz a irmã se aproximando e abraçando Clara por trás.

Já sabendo que algo ruim havia acontecido, a pobre menina rompe num choro doído, forte, sincero.

  • A Jessica sofreu um acidente vindo pra cá, ela queria fazer uma surpresa pra você e acabou morrendo!

Tudo escuro. Não se sabe por quanto tempo. Quando abre os olhos Clara se vê em uma sala branca, somente uma luz fraca no teto mostra a ela que é um hospital. Ao seu lado sua mãe ainda chorando, mas agora mais compulsivamente. Sua irmã com um olhar incrédulo parece não enxergar ali sua irmãzinha caçula, ela não fala, não chora, não sorri, apenas um olhar tão profundo que parece enxergar a alma de Clara.

Depois de alguns minutos em absoluto silêncio, que vez ou outra é quebrado pelos soluços da velha senhora, surge a figura de um médico. Lentamente ele caminha até a cama onde Clara está agora sentada e diz com uma voz serena, serena e triste.

  • Ontem quando você chegou aqui, estava desacordada, e como é de praxe no hospital, colhemos amostra do seu sangue para alguns exames, e neles constatamos que você tem uma doença grave.

  • O que? Essa é a reação da garota.

-Sinto muito dar essa notícia Clara, mas você está com um tipo de câncer no sangue e este é o mais devastador que existe. Ele não se manifesta rápido, e sim vai tomando conta com o tempo. Você nunca se perguntou o porquê de seu corpo não se desenvolver como os das outras pessoas? Isso é culpa dessa doença. Sinto muito.

Dizendo isso o médico sai deixando no ar uma atmosfera pesada, triste e desoladora. Como se mil bombas atômicas tivessem caído no colo de Clara, ela sente que nada mais faz sentido em sua vida. Sua única reação é abraçar a mãe e sua irmã no abraço que nunca foi dado antes. É uma despedida silenciosa. É dizer Eu te amo sem precisar de palavras.

Agora, seis semanas após o acidente e a descoberta, Clara sobe as escadas, entra em seu quarto, tira de dentro de uma gaveta um pequeno porta joias e o abre. Mas não tem anéis, colares ou algo semelhante. Ali se guarda um tesouro muito mais precioso. As fotos dos quatro amigos juntos, e separados. O gordo não é mais gordo, agora é um rapaz bem apessoado, deixou pra trás as espinhas e o cabelo comprido, e trocou por um sorriso largo e um penteado bonito. O atleta continua o mesmo, só que mais velho. Alto, moreno, olhos verdes. Sua paixão na adolescência nunca revelada. A gostosa, a amiga de todo o sempre, a “vadia da minha vida”, como Clara dizia em suas cartas. Agora ao invés de homens atrás de Jessica, Clara têm a impressão de ver um par de asas grandes e alvas. E a nerd. Ela se olha no retrato e não nota diferença, continua magra, de óculos, o mesmo corte de cabelo, os mesmos olhos tristes. O tempo vai passando sem que ela perceba, e segurando ainda a foto velha e amarelada, ela adormece. O sono dos justos.

Amigas não pra toda a vida, mas amigas para a eternidade da morte.

Fim...

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obrigado, aprendendo ainda... maxjoy "lenda".

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