A importância da crença na autoridade

in #autoridade6 years ago

Estou lá eu mais um dia em meu ritual matinal robotizado de olhar o feed de notícias do meu Facebook até cansar quando me deparo com uma notícia que automaticamente me gera um incômodo: uma reportagem qualquer sobre aquecimento global na página de um grande jornal.

Espera, caro leitor, não sou um negacionista do aquecimento global. O que me gerou tal incômodo não foi a reportagem em si, mas o fato de saber que a caixa de comentários da publicação devia estar lotada de negacionistas esbravejando comentários raivosos contra a “farsa do aquecimento global”. Abro-a só para confirmar essa tese e, dito e feito, os tais negacionistas estavam lá, esbanjando pretensão e likes.

Não que isso tenha me decepcionado muito. Afinal, já estou na internet há tempo suficiente para saber que a caixa de comentários das páginas da grande mídia não é exatamente um lugar onde você esperaria encontrar comedimento e sabedoria — pelo contrário, lá o que mais há é soberba e mediocridade. Mas esse fato ensejou em mim a motivação necessária para escrever sobre a importância da crença na autoridade, especialmente na autoridade do cientista.

“Como assim, crença na autoridade do cientista? Espera aí Lucas!”, algum entusiasta da ciência poderia indagar, “a ciência não é uma questão de acreditar em autoridades, mas uma questão de conhecer. Carl Sagan, patrono de todos nós entusiastas da ciência, nunca quis acreditar, ele queria saber”.

Calma. Sagan também é meu patrono e eu também sou um entusiasta da ciência. O meu ponto é que é humanamente impossível saber de todo o conhecimento científico acumulado até os dias de hoje, e que na maioria dos assuntos tocantes à ciência, não tem jeito: nós precisamos fazer concessões intelectuais e acreditar na palavra das autoridades científicas.

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-- A internet é a maior ferramenta já inventada para propagar mentiras --

Um dos grandes males da internet é a enorme facilidade de se propagar ideias falsas e fazer com que, na falta de referências, as pessoas acabem achando que uma teoria sem nenhum fundamento está em pé de igualdade com outra bem estabelecida na comunidade científica. Afinal, um leigo em climatologia, ao ver um suposto especialista dando uma entrevista “refutando” os supostos mitos do aquecimento global, não possui nenhum embasamento para se certificar de que o que esse suposto especialista está falando possui fundamento.

Esse leigo, portanto, pode vir a acreditar na posição que mais está de acordo com seus interesses e ideologias, independentemente de se as evidências apontam de fato para essa direção ou não. Em um mundo onde a internet, e as redes sociais em particular, vêm cada vez mais influenciando até mesmo resultados eleitorais, esse fato é preocupante. (Tanto é que o World Economic Forum classificou a desinformação digital em massa como um dos grandes riscos globais da atualidade [1]).

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-- O filtro de crenças --

Aqui cabe, então, a pergunta que eu tentarei responder neste texto: em um ambiente cercado de narrativas incongruentes entre si, qual delas eu devo comprar? Em quem eu devo acreditar?

Bom, duas linhas alternativas de ações racionais vêm imediatamente em mente: eu posso (i) estudar o assunto em questão até possuir conhecimento suficiente para tomar uma posição; ou (ii) não tomar lado na disputa e simplesmente isentar-me de qualquer debate sobre o assunto. (Também há, claro, a alternativa irracional de palpitar posando de especialista mesmo sem saber nada do assunto).

Da primeira alternativa, uma dificuldade imediata já se apresenta: hoje em dia, o conhecimento acumulado acerca de um único assunto é tão grande que para eu possuir uma opinião bem embasada devo passar anos, quiçá décadas, estudando-o.

Ora, nos dias de hoje, para ser especialista em alguma área da ciência, deve-se possuir no mínimo um doutorado nessa área. Para opinar com propriedade a respeito do aquecimento global, eu devo não só ser um especialista em climatologia ou alguma área correlata, mas estar em dia com a pesquisa acadêmica internacional sobre o assunto.

Então, veja bem, mesmo que eu passe a vida inteira estudando freneticamente, tudo o que vou me tornar é um especialista num pequeno punhado de áreas que, juntas, não passam de uma minúscula fração do corpo completo de conhecimento da humanidade.

Resta claro, portanto, que a alternativa (i) é extremamente limitada para a resolução do problema exposto acima (“qual das narrativas devo aceitar?”), uma vez que o número de narrativas incongruentes que chegam até mim é muito superior à minha capacidade de me tornar especialista em cada uma das áreas que possuem as narrativas conflitantes.

Examinemos então a segunda alternativa. Será que eu devo tomar a atitude extrema de me fechar para todas as narrativas, e, seguindo os passos do ceticismo pirrônico, suspender minha crença em praticamente qualquer coisa, abrindo mão de cometer erros de julgamento e ficando, dessa forma, seguro de que não estou sendo enganado?

Acontece que suspender o julgamento sobre assuntos que afetam amplamente a sociedade talvez seja abrir mão de uma obrigação sua como cidadão.

Até mesmo o cético pirrônico, ao tomar a decisão de se isentar do debate político, não fica isento de influenciar os acontecimentos da sociedade. Afinal, a ascensão de um político que nega a ciência conta com a ajuda implícita do cético pirrônico, que, ao decidir pela isenção, acaba não se somando à oposição desse político e, indiretamente, acaba fortalecendo sua ascensão.

Bom, conclui-se que a alternativa (i) é limitada e a (ii) é temerária. Então o que nos resta? Eu apresento aqui uma terceira via: devemos acreditar na narrativa dos especialistas. Por quê? Pelo simples fato de que os especialistas, em suas respectivas áreas, já passaram por toda a sequência de passos requeridos pela alternativa (i).

Pois bem, o que eu proponho é um método de filtro de crenças -- uma heurística, se preferir. Ele é simples e funciona como uma espécie de selo Inmetro das ideias: está em dúvida se uma teoria acerca do funcionamento do mundo é falsa ou verdadeira? Então veja se ela é aceita pela maioria dos especialistas do assunto. Caso seja, você poderá ficar tranquilo de que essa é a teoria mais adequada aos dados e fatos que se dispõem no momento. Através desse método simples, você pode filtrar muita mentira que é propagada na internet.

Mas cuidado, você deve acreditar no consenso dos especialistas, não em apenas um ou em uma minoria de especialistas. Acredite, para qualquer teoria, por mais bitolada e sem noção que seja, você encontrará na internet um “especialista” que a defende. Adicione a isso o fato de que possuímos vieses cognitivos, como o viés da confirmação, que fazem com que nos comportemos das maneiras mais irracionais possíveis, e você terá o comentarista-padrão das caixa de comentários, que esbraveja contra o aquecimento global.

Por que ele faz isso? Ora, porque ele já está de alguma forma predisposto a negar o aquecimento global, aí vê um “especialista” falando aquilo que ele sempre quis ouvir e não tem outra: ele vai se agarrar nas palavras do “especialista”, pois são canção de ninar para seus ouvidos. O que ele não percebe é que para cada especialista que defende uma tese bombástica e heterodoxa na televisão existem mil especialistas sérios que defendem uma tese oposta àquela e que não são divulgados pela mídia justamente porque são ortodoxos demais para gerar qualquer tipo de polêmica.

Em todas as áreas do conhecimento existem os pontos fora da curva. Da mesma forma que existem doutores em climatologia que são negacionistas, existem doutores em biologia que são criacionistas e até mesmo doutores em geofísica que são adeptos da teoria da Terra jovem [2]. Acontece.

Pode até ser que aquele cientista louco que vai contra o consenso estabelecido esteja certo no final das contas, e que um dia ele venha a ter o reconhecimento que sempre mereceu. Mas na história da ciência esses casos são raríssimos. Então por que acreditar no "cientista louco", se as chances de ele estar errado são bem maiores? É por isso que para você não se deixar levar por esses outliers, você deve olhar para a massa dos especialistas.

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-- O filtro de crenças serve só para temas que possuem consenso --

Ao olhar para a massa dos especialistas e observar que não há consenso entre eles sobre o tema que você está procurando, você então tem duas opções: (i) ficar na sua e esperar que os cientistas alcancem o tal consenso; ou, caso você esteja realmente curioso sobre o assunto, (ii) estudar o tema em questão, podendo até eventualmente vir a se tornar um especialista.

Digamos que quanto menor o grau de consenso entre os especialistas em determinado assunto, maior o “grau de liberdade” que o leigo possui para aderir a uma das visões conflitantes. Nesses casos, até pode ser justificado o leigo acreditar em certa teoria que lhe agrada, seja por motivos estéticos, ideológicos ou de qualquer natureza, mas ele deve fazer isso com a noção de que a área em questão ainda está em processo de construção de consenso, portanto grandes convicções aqui devem ser evitadas.

Um bom exemplo dessa falta de consenso entre os especialistas é a física quântica: apesar de (quase) todos os físicos concordarem que a física quântica é uma das maiores realizações do intelecto humano (se não a maior), sendo a teoria mais bem sucedida em fazer previsões com uma precisão sem igual na ciência, ainda não há um consenso entre os especialistas a respeito de como de fato ocorrem as interações no mundo quântico, apesar da interpretação de Copenhagen ser a mais aceita [3].

Porém, não há motivos racionais para um leigo negar teorias muito bem estabelecidas no corpo científico, aquelas que são aceitas por, pelo menos, sei lá, uns 90% dos especialistas do assunto.

Portanto, você pode acreditar tranquilamente na teoria da evolução [4], na relatividade, na física quântica, na teoria atômica, na genética e na tectônica de placas. Pode também comer seu alimento transgênico sem temer que ele vai lhe causar doenças [5]. Pode confiar que tarifas de importação geralmente reduzem o bem-estar econômico da população [6]. Todas essas teorias são esmagadoramente aceitas pelos especialistas.

E qual é a opinião dos especialistas sobre o aquecimento global? Em uma enquete entre especialistas, o resultado encontrado foi de que 97% deles acredita que o aquecimento global não só existe como é causado pela ação antrópica [7].

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-- A dependência em relação aos especialistas não é um ato irracional --

A completa independência intelectual é uma quimera. Pessoas extremamente inteligentes na história da humanidade foram, quando muito, especialistas em uma fração minúscula da esfera total de conhecimento existente. Fora de seu campo de especialização, suas inteligências pródigas pouco tinham a acrescentar de relevante ao debate especializado.

Albert Einstein era um gênio e foi a maior autoridade da física em seu tempo, mas provavelmente não conseguiria julgar com propriedade duas teorias conflitantes da citologia bacteriana. Nem aquelas personalidades conhecidas por serem enciclopédias ambulantes, por saberem muito sobre muita coisa, como John von Neumann ou Murray Gell-Mann não fugiam/fogem à regra. Sim, eles sabiam/sabem muito comparados a nós, meros mortais. Mas comparados à totalidade do conhecimento humano acumulado ao longo da história, eles sabiam/sabem quase nada.

Então, como é humanamente impossível você se especializar em tudo, faz todo sentido você se especializar em uma só coisa, ou num grupo restrito de coisas (sejam elas do âmbito da ciência ou não), e delegar a função de se especializar em outras coisas para outras pessoas. Assim tudo é muito mais produtivo.

O que eu proponho não é nada mais do que a velha ideia smithiana da divisão do trabalho, mas nesse caso uma divisão do trabalho intelectual (ou divisão do conhecimento) [8]: enquanto faço as minhas coisas aqui, os cientistas fazem as coisas deles lá. E o que os cientistas fazem? Descobrem coisas sobre o mundo. Então eu vou deixá-los descobrir as coisas do mundo por mim enquanto faço o meu trabalho. No final, nós trocamos os produtos dos nossos trabalhos: oferto aquilo que produzi e eles ofertam aquilo que produziram -- no caso, as teorias científicas.

Esse método é muito menos trabalhoso que a completa independência intelectual: em vez de você ficar anos pesquisando sobre um assunto para formar uma opinião, basta pesquisar qual é a opinião dos especialistas do assunto em questão. Isso lhe retira o fardo de ter que conhecer a fundo tudo aquilo em que você pode acreditar, e lhe libera tempo para que você faça coisas que considera mais importantes.

Perceba também que não estou falando para você aceitar cegamente o que os cientistas falam, como se fosse palavra lapidada em pedra por alguma divindade. Se você realmente tem curiosidade sobre algum assunto, corra atrás, estude, pesquise, questione, não aceite a palavra da autoridade, tente entender por si mesmo.

Mas faça isso com o humilde reconhecimento de que caso você chegue a conclusões diferentes daquelas a que chegaram os especialistas, é bem mais provável que o errado nessa história seja você, uma vez que eles já passaram por todos os passos pelos quais você está passando só agora -- então keep calm and continue estudando.

Porém, se você tem menores pretensões e quer simplesmente viver sem ser enganado por charlatões de toda sorte, sem que para isso você tenha que ser um cético pirrônico, uma boa bússola é o método da crença no consenso dos especialistas, pois as chances de eles estarem certos são bem maiores do que as chances daqueles que nada sabem sobre o assunto.

Mas detalhe: esse filtro só serve caso você seja um leigo no assunto. Caso você seja um especialista e as suas teorias são rejeitadas pelo mainstream, esqueça esse método: lute pela sua teoria, mostre que você está certo, tente se colocar na posição do defensor do mainstream e perceber o que o está impedindo de enxergar a verdade. (Apenas tome o cuidado de se certificar de que você é realmente um especialista. Especialistas fazem pesquisas de ponta e interagem com outros profissionais da área com frequência. Caso você não faça isso, é bem provável que você seja só mais um palpiteiro, e há poucas coisas piores no mundo do que um palpiteiro arrogante).

À primeira vista, pode parecer que esse método seja uma falácia lógica por se tratar de um apelo à autoridade. Afinal, a veracidade de uma proposição não depende do fato de alguém acreditar nela, por maior autoridade que essa pessoa seja. O argumento é cristalino e irrefutável.

Acontece que minha argumentação, apesar de ser um apelo à autoridade, não é uma falácia, pois não é um argumento do tipo “X está certo porque A diz que está certo”, mas sim um argumento probabilístico do tipo “entre várias teorias concorrentes (X, Y, Z, …), cada uma delas defendidas por certos grupos (A, B, C, …), as chances de X estar certa são bem maiores que as chances das demais, pois X é defendida por A (que possui os elementos a1, a2, …) e é evidente que as chances de A estar certo são muito maiores que as chances dos demais”.

Ora, na impossibilidade de se conhecer a fundo um assunto, e para se ter uma vida sã, deve-se apelar para a autoridade ao se posicionar em relação a tal assunto, mesmo correndo o risco de que a posição da autoridade esteja errada (pois a verdade não se curva às autoridades humanas). Essa é a posição mais segura do ponto de vista do leigo.

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-- Proposta para reflexão --

Agora pare e pense, caro leitor: será que você não anda acreditando em, e até mesmo defendendo publicamente, teorias que contradizem o consenso estabelecido entre os especialistas? Será que você não anda tendo certas crenças que contradizem a massa dos especialistas só porque elas combinam mais com seus gostos e interesses, comprometendo dessa forma a sua busca pela verdade? Este é um risco que todos nós estamos sujeitos, e eu mesmo vivo cometendo esses atos irracionais! Mas o primeiro passo para a mudança é a percepção do erro, sem a qual o sujeito nunca saberá que está errando.

Portanto, reflita.

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[1] http://reports.weforum.org/global-risks-2013/risk-case-1/digital-wildfires-in-a-hyperconnected-world/
[2]

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