Mentiras e outras desgraças da nossa infância
(imagem ilustrativa)
“Come cenoura que faz os olhos bonitos”
Ora esta grande mentira não só deu esperança a muita criança que nasceu de olhos castanhos e ambicionava outra cor, mas também enganou e impediu muita gente de ir aceitando a sua aparência.
Acontece que eu tinha uma amiga chamada Maria Rita que era muito boa pessoa mas que tinha um olho em Lisboa e outro na Margem Sul. Era realmente difícil perceber se ela estava a falar comigo ou com a pessoa ao meu lado se ela não dissesse o meu nome. Assim sendo, munidas da nossa ingenuidade pueril e baseadas em factos proferidos por sumidades do conhecimento (as nossas avós, pais e professores), decidimos que era na cenoura que residiria a solução.
A partir daí iniciámos a nossa cruzada em busca da cura para o problema da Maria Rita. Devo dizer que ao longo desta épica demanda tornei-me uma pessoa melhor. Bem, melhor não sei, mas detentora de mais sapiência que só advém das lições de vida ou de passar uns tempos na prisão.
O meu primeiro passo foi abdicar do alimento que traria à Maria Rita a dádiva da estética ocular. Ora isto não foi fácil. Tive de desistir da possibilidade de ter belos olhos azuis e contentar-me com o que Deus me tinha dado. Assim, sempre que almoçávamos na escola, desde a sopa até aos quadradinhos que faziam parte da jardineira de vitela, todos os pedacinhos do “remédio” iam parar ao prato da minha amiga. Este foi o meu primeiro grande ato altruísta.
Por outro lado, aprendi a fazer justiça pelas minhas próprias mãos. Em todas as escolas há sempre aquela criatura embirrante e malvada que se diverte a achincalhar os outros das formas mais perversas e danosas. Hoje em dia já temos um nome todo fino para o espécime - é um “Bully” e sabemos que os seus comportamentos têm a ver com as suas próprias inseguranças - mas nos anos 90 era apenas parte integrante do percurso da selva escolar. Ora o Zé Miguel gostava muito de generosamente distribuir pontapés e tal como tantas outras vitimas, a minha pessoa ficava com as pernas repletas de nódoas negras que o meu pai carinhosamente apelidava de medalhas. MEDALHAS. Seriam prémios de bravura se o Zé Miguel ficasse em pior estado do que eu, mas não ficava. Foi nesta conjuntura que comecei a maquinar, quase que inconscientemente, uma maneira de o fazer pagar. Acontece que este rapaz, para mal dos nossos pecados era multifacetado e para além de porrada também se divertia a insultar-nos e claro que os olhos da Maria Rita frequentemente eram alvo do seu carinho. Deste modo, juntei o útil ao agradável e por muito que me apetecesse espetar-lhe um garfo, optei por privá-lo daquilo que traria benefícios aos seus malvados olhos. Assim, comecei a roubar-lhe cenoura todos os almoços para dar a quem mais necessitava e merecia. Na verdade, fazer justiça ofereceu-me ainda algo ainda melhor - o sabor da vingança.
Por último percebi que para atingir um bem maior alguns sacrifícios têm de ser feitos (mesmo que quem os faça tenha que levar um pequeno empurrão nesse sentido). Decidi que a Carminho - a miúda mais gira da turma, loira de olhos azuis (é claro) e por quem todos os rapazes estavam caídinhos - teria de fazer o sacrifício e abdicar dos seus pedaços de cenoura. Na verdade a Carminho nunca foi realmente má para nós e analisando as coisas em retrospetiva percebo que o ódio que cresceu dentro de nós, advinha de comentários emitidos por terceiros. A Carminho era sempre a bitola, nenhuma era tão bonita como a Carminho, o seu cabelo era sempre perfeito, tinha sempre os brinquedos mais fixes e a sua caligrafia era exemplar. Hoje percebo que na verdade a família da Carminho era podre de rica, comprava-lhe montes de brinquedos e tinha pouco tempo para os filhos, pelo que havia uma tutora que a acompanhava nos estudos, empregadas que a vestiam e faziam penteados fantásticos e quanto às suas características físicas, bem...Os betos na sua maioria tendem a ser loiros de olhos azuis, porque tal como os ciganos, costumam a casar entre si, os primeiros porque são uma comunidade fechada e os segundos para que as desigualdades económicas perdurem na sociedade. Deste modo, munida do rancor e inveja que sentia privei-a do valioso alimento nas refeições que se seguiram.
Desisti ao fim de duas semanas.
Hoje a Maria Rita é uma mulher com uma enorme coleção de óculos de sol.
Sensacional!!!
Agora, para boletim da #trovadores, queria uma luz sua: teremos uma série? Digo, haverá um conjunto de "mentiras e desgraças", cada texto com seu título?
\Abraços/
Muito obrigada! É um excelente desafio vamos ver se a inspiração está à altura da tarefa.
Já percebi que estará e fico torcendo pra que os próximos cheguem brevemente ;)
\Abraços/
Hehehehe! Muito bom! Fizeste-me viajar até esse belos tempos de escola, onde matraquilhavamos as primeiras soluções para os nossos problemas do dia a dia e arquitetavamos as vinganças ou recompensas nesse todo enredo juvenil! :D
Obrigada. O imaginário infantil tem destas coisas. Surgem demandas épicas em situações mundanas.
Muito obrigada por participar da iniciativa #Trovadores . poesia e prosa!
O seu texto já está na edição de hoje desta curadoria.
Para acessá-la, clique em ou
\Abraços/
@tmarisco
#trovadores . @msp-brasil
Muito obrigada por incluírem o meu texto!
Nem pensar em não incluir os seus textos XDDD