Um Compromisso com o Infinito

in #pt6 years ago (edited)

Na manhã do dia em que sua vida começaria a sofrer uma mudança radical, Marcus acordara com uma sensação de torpor, tinha a mente confusa e não podia coordenar bem seus pensamentos. Escutava ao longe a voz de sua mãe gritando:

– Levanta ! Vai se atrasar para a escola!

Apesar de estar consciente, não conseguia se levantar, e todos os músculos de seu corpo pareciam paralisados. Tivera novamente um horrível pesadelo de madrugada. Estes pesadelos se tornaram uma constante nos últimos meses, e só conseguiu voltar a si, quando sua mãe, borrifou água em seu rosto como sempre fazia nestas ocasiões, então ele se ergueu de um salto gritando palavras desconexas.

– Não! Me deixe continuar, demônio! Me solte!

– Marcus? Você está bem? – perguntava sua mãe ao pé da cama – O mesmo pesadelo de novo?

– Ooh, é isso! Aconteceu de novo, acho que estou doente.

O jovem Marcus já há vários anos, corria em competições de atletismo, e treinava no clube quase que diariamente. Acontece que de algum tempo para cá, vinha tendo um sonho recorrente. Sonhava estar correndo em um evento importante e quando tudo ia bem, e ele assumia a liderança não tendo mais ninguém a sua frente, somente a linha de chegada, prestes a vencer a prova e sagrar-se campeão, acontecia o pior: de repente tudo parecia ficar em câmera lenta, perdia velocidade, suas passadas ficavam pesadas. Começava então a se desesperar, sentindo seus adversários se aproximando por trás. Para sua total agonia, além de ser ultrapassado, alguém o agarrava pelas costas, o derrubava no chão com força, e deste momento em diante tudo escurecia. Depois disso ficava totalmente paralisado, sem conseguir se mover, e se sentindo extremamente angustiado. Neste momento quase sempre acordava, mas a sensação de paralisia continuava e ele ficava lutando para soltar-se na mais completa escuridão.

– Meu filho, você anda nervoso demais por causa do treino e das competições, talvez você devesse dar um tempo, correr não pode ser a coisa mais importante da sua vida.

Enquanto ia para a escola, no ônibus, ficou pensando se sua mãe não tinha razão, e chegou a conclusão que talvez sim, pois quase sempre tinha estes pesadelos depois de um treino mais intenso. Chegava em casa cansado, comia, tomava um banho e quase sempre desmaiava de sono, e então no meio da noite seu sono ficava conturbado e era quando o estranho sonho ocorria, o mais impressionante é que estes sonhos pareciam muito reais, não eram como os outros, cada detalhe, cada sensação, tudo era extremamente vívido.

No entanto começou a se lembrar de certo fenômeno que também lhe acometia quando era mais novo, que parecia guardar certa relação com o pesadelo. De vez em quando a noite, antes de dormir, após um dia muito intenso de muitos acontecimentos e brincadeiras, entrava em uma espécie de delírio. Era como se as coisas, o tempo e sua percepção da realidade, mudassem de rotação e tudo ficasse mais lento e pesado. Esta sensação de peso, lentidão e estar preso a algo que girava, girava e ao mesmo tempo lhe dilacerava o peito, era muito parecida com o momento angustiante em que ficava paralisado no sonho. Estes delírios lhe aterrorizavam muito, pois tudo parecia perder o sentido, mas para sua alegria e alívio, tinham desaparecido depois de um tempo e imaginava que eram coisa de quando era pequeno, mas agora, com os sonhos, toda sua agonia parecia ressurgir em dobro.

O dia todo ficou pensando sobre isso e se perguntando se na verdade não sofria de algum problema neurológico. Foi um dia um tanto melancólico, e não conseguia concentrar-se nas aulas, sentia-se alheio a tudo, como que deslocado da realidade. Tudo que diziam parecia idiota, seus amigos, professores, pareciam estranhos, feios, ridículos. Era como se naquele dia ele não tivesse acordado de todo, mas ainda estivesse sonhando, e todos os acontecimentos da vida cotidiana se apresentassem sem razão de ser. Começou a se dar conta que aquela sensação de que nada fazia realmente sentido, era muito comum em sua vida, como se faltasse algo, mas ele não sabia explicar o que. Algo não estava certo, a vida não podia ser só aquilo, o que era que faltava? Qual a verdadeira razão de sua existência? Sentia uma enorme força, uma enorme energia dentro de si mesmo, semelhante a uma mola comprimida prestes a explodir.

Esta noite não iria ao clube treinar, mas a uma festa junto com seus camaradas do colégio. Não sentia a mínima vontade de sair, mas quando seus amigos buzinaram em frente a sua casa chamando-o, ele, agindo de forma mecânica, se arrumou e saiu. Chegando na festa, todos estavam muito animados e felizes menos ele. Era um dia estranho, pois parecia não ter controle sobre seus atos, as pessoas riam e ele ria, as pessoas gritavam e ele gritava, sentia-se como uma marionete, repetindo os atos de seus semelhantes, até que começaram a beber vinho e ele também começou a encher a cara... Aparentemente foi bom, pois ficou eufórico. No entanto, ele não era acostumado a beber, e logo ficou em um estado deplorável, rindo e falando coisas sem sentido.

Em certo momento, dirigindo-se para a cozinha a fim de buscar mais bebida, observou uma menina de pele morena, sentada em um canto, que devia talvez ser uma ajudante da cozinheira, pois não estava bem vestida como as outras convidadas. Quando seus olhos se encontraram, Marcus ficou parado na porta da cozinha sem conseguir continuar e percebeu no olhar da moça um estranho brilho. Por um momento que pareceu longo, era como se houvesse se estabelecido entre eles uma conexão telepática, pois não conseguiam desviar o olhar e ao mesmo tempo permaneciam em completo silêncio, até que uma voz os interrompeu ;

– Diana! Cadê você? Vem cá me ajudar com isso...

E a garota saiu apressada desviando o olhar...

Depois disso, Marcus já não queria mais beber, ficou atraído pela beleza exótica e o olhar enigmático da jovem, com vontade de procurá-la para conversar, mas sua timidez lhe impediu. Irritado e como que por impulso resolveu ir embora sozinho, apesar de seus amigos tentarem dissuadi-lo dizendo que não deveria andar a pé à noite na escuridão, que poderia ir de carona com alguém, ele não deu ouvidos e foi saindo apressado.

Logo estava caminhando pelas ladeiras cheias de curvas daquele bairro que ficava na parte alta da cidade, em cima dos morros. Enquanto caminhava sentiu uma grande vontade de correr. Depois disso, tudo se desenrolou como em um sonho. Corria, corria, e não pensava em nada. Começou a não saber mais se aquilo era real, apenas corria, cada vez mais veloz e parecia correr em direção a resposta para o seu dilema. De repente sentiu como em seus pesadelos tudo ficar mais lento, já não conseguia se movimentar normalmente, cada passo parecia um grande esforço, cada segundo durava muito, estava em uma curva, em uma ladeira íngreme, e vislumbrou seu perseguidor se aproximando, teve ainda tempo de pensar;

De novo não... de novo não... estou ficando louco?...

Depois disso escutou um estrondo, uma pancada violenta nas pernas, uma forte dor na cabeça, então tudo escureceu e mergulhou em uma profunda inconsciência.


continua...


Imagem: OpenClipart

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Boa, senti uma certa semelhança entre o fato de ele não consegui ultrapassar a linha de chegada no sonho com sua timidez...


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Ótima interpretação, não tinha pesado nisso mas faz todo sentido. A timidez e a dúvida é o que nos paralisa.

Que história interessante @pedrocanella, já aguardando a continuação para a vida do Marcus. Talvez, a pressão do mundo em cima dele, esteja empurrando-o para um estágio de ansiedade e depressão, misturando-se a esta longa timidez....Vamos Marcus, força para enfrentar estes obstáculos!rsrs

Que bom que gostou ! Já escrevi o segundo capítulo. O destino reserva grandes feitos ao Marcus... ops, deveria ter ficado quieto para manter o suspense. Vou tentar criar uma saga e lançar um novo capítulo toda semana. Muito obrigado pela leitura e comentários.

Aguçou a vontade de já ir ao segundo capítulo @pedrocanella.... Indo fazer uma visitinha ao Marcus, e verificar o que o moço anda aprontando!rsrs

Já tem o segundo, agora é buscar inspiração aqui para continuar... hehe

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O seu texto já está na edição de hoje da desta curadoria.

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@tmarisco
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