História do Surfe – parte 2 – O Verdadeiro Espírito do He'enalu

in #pt6 years ago (edited)
Todos que surfam ou já surfaram sabem que conseguir "cortar" pela primeira vez a parede de uma onda aproveitando todo o potencial de sua energia é sempre um momento mágico. Esta experiência fica vividamente gravada na memória e no espírito.
Imagine então para as antigas tribos polinésias que inicialmente chegaram ao Havaí. Para eles a prática do He'enalu, que se traduz atualmente por surfar, ou cavalgar uma onda, tinha um significado muito mais amplo do que uma simples técnica ou recreação.

Naquela época surfar era considerado uma das atividades mais respeitadas pela sociedade e também uma das formas pelas quais os havaianos expressavam sua religiosidade e se relacionavam com o "mundo dos espíritos".

Para eles as forças da natureza eram deuses. Não podia ser diferente, já que toda sua vida e sobrevivência dependia do mar e de sua capacidade de lidar com fenômenos naturais.

Tais divindades eram temidas e veneradas e não é de se admirar que nesta região tenha se desenvolvido uma estrutura religiosa tão rica e complexa.

Os primeiros navegadores que alcançaram o Havaí o fizeram se utilizando apenas da observação das estrelas, dos ventos, dos swells e até mesmo dos pássaros.


Exímios navegadores, com suas canoas de madeira perfeitamente entalhadas, aproveitando o vento e as potentes ondulações, eram capazes de atravessar longas distâncias em grande velocidade.

Devido ao aprimoramento de uma ampla cultura marítima e uma observação atenta dos fenômenos da natureza foi possível aos polinésios desenvolver uma técnica única de navegação, baseada na direção e intensidade das ondas, realizando o feito de descobrir um dos lugares mais isolados do mundo antes dos europeus.

No Havaí encontraram ondas mais poderosas e constantes do que em qualquer outro lugar do planeta e condições mais adequadas para o desenvolvimento do surfe em sua plenitude. Logo levaram sua prática a um novo nível e patamar.


No Thaiti, onde o surfe já existia, ele é quase sempre praticado em recifes de corais, nos quais se forma um tipo de onda muito boa, no entanto mais previsível. Enquanto no Havaí eles se depararam com uma variedade de ondas muito maior, oriundas de vários tipos de bancadas diferentes, e puderam surfar em uma gama muito maior de condições.

O surfe sempre foi uma atividade originária do contato direto com o mar e seus eventos marítimos catastróficos de natureza incontrolável, e portanto divina. Na cultura destes povos representava a busca de uma relação do indivíduo com o mundo sobrenatural.


Deste modo poderíamos entender a prática do he’enalu como uma representação da “comunicação” com o divino, ligadas intimamente à realização de rituais no intuito de “controlar” as águas tempestuosas e ameaçadoras das violentas ondas da região, e desta forma, promover um relativo domínio sobre a natureza.

Em uma sociedade que privilegiava a coragem e a habilidade guerreira, e encarava o mar e, em especial as ondas, como eventos cosmogonicos representativos da "fúria" ou da "satisfação" dos deuses. (Por exemplo: a falta ou abundância de peixes em paralelo às condições das ondas estarem agitadas ou escassas).

Dentre os deuses mais cultuados, estão: Wakea (céu), Kane (luz, vida, água), Lono (fertilidade da terra), Kü (guerra, coragem) e Kanaloa (mar), seus feitos e lendas são até hoje muito difundidos pelos havaianos.

Por isto, os havaianos se reuniam na praia ao redor de um feiticeiro xamã denominado Kahuna, que realizava uma cerimônia, batendo com folhas de bananeira nas águas do oceano, e entoando certas rezas cantadas em voz alta.


As divindades eram gravadas na pedra e esculpidas. Muitas esculturas são encontradas na beira mar e funcionavam como templos. Isto demonstra o profundo significado religioso que o he'enalu assumia nas sociedades havaianas.

Desbravando o maior e mais violento oceano do planeta esta cultura estava impregnada de misticismo em todos seus aspectos. Diversos rituais e invocações de uma numerosa quantidade de deuses, ou espíritos eram necessários para se construir uma canoa. Ainda mais se ela fosse confeccionada para realizar grandes navegações.

É importante mencionar que, devido à disputas tribais ou como consequência do aumento insustentável da população de uma ilha, eventualmente era necessário que tribos inteiras partissem em uma jornada de exploração de vida ou morte, na busca por uma nova terra, e nestes casos podiam ser necessários inclusive rituais com sacrifício humano.


A confecção das pranchas, assim como das canoas, eram realizadas por um experiente navegador/xamã através de um ritual específico de comunicação com o o mundo dos espíritos.

Enquanto para a maioria dos povos e culturas arcaicas o universo espiritual no qual o xamã encontra seus guardiões está sempre relacionado ao mundo subterrâneo terrestre, aqui temos uma supremacia do mundo profundo do oceano e suas entidades.


Kanaloa é o deus havaiano dos oceanos e de todas as espécies de vida que habitam os mares. Ele é simbolizado pela lula e pelo polvo, e é comumente associado ao deus Kāne. Existindo uma vasta quantidade de conhecimentos populares e míticos nos quais os dois deuses são nomeados juntos. Ambos são invocadas por canoeiros, Kane pela canoagem e Kanaloa pela navegação.

Kanaloa também é considerado o deus do mundo profundo (onde os xamãs fazem sua jornada de iniciação e encontram seus protetores e espíritos guardiões), e um mestre de magia.


No próximo capítulo falaremos sobre um dos aspectos mais importantes que são os diversos tipos de pranchas, suas funções e como eram feitas. Os primeiros eventos e “competições” de surfe entre lideranças tribais, seus aspectos políticos e sociais, ou seja; um vislumbre do caminho que levou à criação do esporte atual.

Veremos também como foram os primeiros contatos da cultura ocidental com a prática do surfe, quando em 1779 o Tenente James King, que ia a bordo de expedição britânica, liderada pelo famoso Capitão Kook, registrou o que chamou de “exótico passatempo” em seus diários de bordo.


Bibliografia:

Monografia: Uma História Social do Surfe - Alexandre Guilherme Ribeiro
Site: HONILIMA living aloha – I HO'OKAHI KAHI KE ALOHA
Filme: As Origens do Surfe – Canal Off)


Fonte das Imagens: (1) MitoGrafias (2) Hoomana (3) Tim Mackenna (4) 100Dias (5) Blog De passo por... (6) Printerest (7) e (8) Honilima


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Sensacional teu post. Nunca tinha visto algo tão fundamentado sobre surf.

Oba! Muito obrigado, fico feliz!

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