CRÍTICA | Todos Já Sabem

in #pt5 years ago

É envolvente a forma como Todos Já Sabem discorre sua narrativa. O roteiro e a direção de Asghar Farhadi, tão coesos, elaboram uma jornada cujos ritmo e desfecho se despem de padrões familiares e adotam valores próprios. O resultado é uma jornada meticulosa sobre o família, passado, segredos e relacionamentos, numa primeira camada. E esses temas, bem elaborados individualmente, ainda se combinam para refletir sobre algo ainda maior: o tempo.

A história se desenvolve num pequeno povoado espanhol nos dias atuais. Laura (Penélope Cruz), junto com seus filhos Irene (Carla Campra) e Diego (Iván Chavero), retorna sua à cidade natal para o casamento de sua irmã. O marido, Alejandro (Ricardo Darín), não pôde comparecer. Durante a festa de casamento, uma tragédia assola a família. A partir disso, segredos são revelados…

Há um suspense no meio do drama de Todos Já Sabem, consequência da tragédia que guia o roteiro. O gênero se apresenta mais pela situação do que pela condução. O mistério que ronda a família oferece doses de suspense. Fora isso, Farhadi não utiliza o gênero de maneira comum. Não completamente, pelo menos. O desfecho da tragédia deixa isso mais evidente já que ele vai na contramão de algumas convenções comuns do gênero. Não há, por exemplo, confronto final, um duelo entre os envolvidos na tragédia. Tampouco uma dramatização acerca da vítima. Além disso, a resolução do conflito acontece longe das câmeras, sem espetáculo, numa revelação fracionada: primeiro a bolsa, depois os pés. Mas antes disso, Farhadi já demonstrara, ao longo do desenvolvimento, que o suspense inerente à narrativa seria mais uma ferramenta para o drama. Diante a tragédia, o foco mantém-se unicamente na família e nas relações subsequentes. O roteiro não demonstra interesse em elaborar uma trama investigativa que dispõe pistas discretas ou perspectivas acerca dos “vilões”. Desvendar o mistério antes do filme não me pareceu ser um exercício muito útil.

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A jornada de Todos Já Sabem me envolveu pela relação de proximidade com a família. A direção de Asghar Farhadi e a fotografia de José Luis Alcaine criam essa conexão ao colocar o espectador numa distancia acessível com todos, nada intrusiva ou forçada. Há um conforto nesse desenvolvimento. Há, também, paciência. A construção da relação com a família é lenta e calma. O envolvimento surge nessa relação de tempo investido. A dinâmica familiar, pautada nas relações de outrora, discorre naturalmente, com poucos cortes, em sequências longas. A montagem de Hayedeh Safiyari estabelece essa dinâmica calculada.

Formada essa relação, Todos Já Sabem abaixa a guarda do público. O desenvolvimento dos personagens – que é o principal foco do filme – é agradável de acompanhar, principalmente diante toda aquela festividade, tão recheada de leveza e carinho (e conflitos corriqueiros) do aspecto familiar, sugerindo conexões e histórias em detalhes como o abraço afoito de pai e filha ou, de maneira mais implícita, a relação entre Paco (Javier Bardem) e Irene (Carla Campra), na sequência da estrada. E é seguindo esse desenvolvimento calculado que a tragédia discorre sem alarde espetacular. A tensão oriunda é interna, longe da superfície. A dimensão recorrente da tragédia é elaborada no mesmo ritmo calmo, vagaroso, até a conclusão. O contexto daquela lentidão muda, mas ela se mantém. Isso criou em mim uma aflição a “conta-gotas”. Vagarosa que, sem perceber, tornava-se cada vez mais volumosa.

Ao perceber que minha aflição crescendo paulatinamente, lembrei-me da introdução. A ideia se apresenta na abertura que disseca as complexas e precisas engrenagens do relógio da cidade. Aquela frieza mecânica constante, de aspecto tão antigo e adornada por histórias – as muitas iniciais de casais apaixonados e de gerações diferentes. Houve uma percepção sobre a relatividade do tempo já que até a tragédia, a leveza era fluida, transcorria desapercebida. Após, o ritmo tornou-se incômodo, ainda que se mantivesse o mesmo. Diante essa sensação, Farhadi elabora momentos dolorosos, como a cena da escada onde Laura chama por uma pessoa. A expressão corporal de Penelope Cruz é lancinante. A proximidade da câmera, tal era como antes, torna a dor mais palpável. Isso tudo tornava o tempo mais perceptível

Numa primeira camada, Todos Já Sabem elabora retratos e discussões variados, focando nos ecos temporais dos ruídos de comunicação e sentimentos reprimidos. Há uma tensão nas entrelinhas da relação familiar (algo que há, possivelmente, em todas as famílias com aquela relação efusiva) e, através do roteiro calculado, aos pouco nos é revelado o motivo. As sequelas tornam-se mais visíveis. Remorso, culpa, inveja, rancor, são dispostos visualmente, em diálogos, olhares, comentários. Cada sentimento desses, oriundo desse conflito no passado, recebe alguma atenção. Mas é a forma como ele é apresentado que agrega o maior valor. Ela apresenta um fato e a complexidade da perspectiva sobre ele. Enquanto uma pessoa vê a ação de Paco como algo ruim (tirando proveito de uma família em necessidade), outro vê bem (ajudando à amiga da forma como podia). Não se trata, então, da banalidade do certo e errado, mas um olhar sobre o peso do tempo sobre as coisas, sobre as pessoas. E é aí que Todos Já Sabem ganha uma segunda camada, mais densa, profunda e subjetiva.

“O tempo molda o caráter”, diz Paco sobre o amadurecimento do vinho, enquanto espreme uvas com a mão. O suco, diz ele, ainda não é bom, mas ficará melhor com o tempo. Essa sequência é emblemática e para mim traduziu a obra. O filme trabalha o tempo, mudando sua percepção a partir do contexto. Como o tempo molda caráteres a partir de decisões individuais, a partir de perspectivas. Paco, por exemplo, apresenta um semblante dúbio em sua conclusão. Parece leve, mas também captei uma possibilidade menos otimista, como uma incredulidade. Ou o breve e tímido sorriso de Irene sugere sua perspectiva otimista e que o tempo pode ser um aliado.

No fim, o fade branco pareceu-me sugerir que o tempo está aberto a possibilidade diversas, mas pautadas nas decisões de agora. O branco parece também brincar com o divino por vezes citado por Alejandro. Não sobre a existência ou não de algum deus, mas a possibilidade e a ótica crente e cética. No fim, o que existe é o tempo e nossas próprias decisões e perspectivas.

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