#Filmoteca - Hereditário

in #pt6 years ago (edited)

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Poster Divulgação - Fonte IMDB


#Aviso: Deixo claro que a exposição de conteúdos neste contexto estão sujeitas a minha interpretação. Tendo em vista a era da desinformação e fake news, acredito ser importante trazer conteúdos para conhecimento do público, pelo menos superficial, de como é importante a academia. E estimular quem tiver interesse em refletir e conhecer sobre alguns conhecimentos sobre a nossa espécie. Como o texto serve a minha interpretação, podem a estar sujeitas aos meus vieses interpretativos. Em caso de dúvidas ou complementações, só deixar no espaço do comentário abaixo. O texto serve ao intuito educativo, e reflexivo. Uma discussão ilustrativa, sem conhecer os sujeitos. Uma interpretação real só pode ser realizada na presença do sujeito, e a partir da transferência, o saber do sujeito na clínica é o que mais importa, ninguém pode saber mais sobre nós, e nossa realidade, do que nós mesmos.


O filme Hereditário me surpreendeu. A proposta do autor da obra de misturar conhecimentos sobre o funcionamento mental e os mitos culturais, só por isso já traz uma ótima reflexão e discussão.

Acrescenta-se a essa discussão a questão da genética, já que a hereditariedade por similaridade já leva muitos a pensar na passagem dos genes parentais aos filhos, e até reverbera do funcionamento acadêmico, onde o organicismo se sobrepõe ao conhecimento das doutrinas que avançaram muito em seus campos, tanto quanto a ciência evoluiu.

Levando em conta essa linha tênue dos limites do conhecimento e o místico que se faz o roteiro, ainda somos levados a uma tensão desenrolar da história, que se forma em uma dinâmica que relembra as tragédias gregas. Trazendo através de sua empatia estética, uma construção que me fez sentir angustiado do início ao fim.

Acompanhando a história que percorre o mito familiar atuado, temos na parte técnica cores frias, em uma trilha sonora imersiva, ótimas atuações, fotografia, edição e direção, nos levando a tonalidades afetivas diferentes de acordo com os acontecimentos, por vezes chocantes.

Não tenho como comentar esse filme sem trazer Spoilers, já que pretendo com viés educacional, correlacionar alguns conteúdos com uma discussão dentro de doutrinas do conhecimento através do conteúdo do filme. Recomendo assistir o filme para melhor compreensão.

Aviso - Contém Spoilers!!

O filme se inicia com uma notícia do falecimento de Ellen Taper Leigh, uma senhora que perpassou anos de uma doença mental. Era a avó materna dessa família que se passa a trama.

Assim a família segue, uma estrutura nuclear, composta pelo pai (Gabriel Byrne - Steve Graham), a mãe (Toni Collette - Annie Graham), e dois filhos, o mais velho (Alex Wolff - Peter Graham) e a mais nova (Milly Shapiro - Charlie Graham).

A relação da mãe com o filho não é das melhores, consequência do que no filme a personagem trouxe como “sonambulismo”, onde quase matou os filhos em um dos seus “sonhos”.

A filha eleita pela mãe, tem todo cuidado que o filho não tem. Uma ectoscopia com faces alargada, olhos grandes, de aparência que chama atenção por diferir da norma. E que a mãe queria que vivesse as nuances da “normalidade” comum aos adolescentes que ela julgava ser “normal”.

Nesses contextos o Pai pouco aparece, com atuações pontuais no início da trama.

Fiquei em dúvida, e se alguém assistiu e pode apreender melhor, em qual perspectiva o diretor encaminha o filme. Na do filha, do filho, ou na da mãe. Isso se mistura, e dificulta um pouco a discussão, podendo ser proposital ou não do diretor e editor.

Começando por Annie Graham, a mãe,, caminhamos acompanhando a mãe a terapia de grupo, que é muito interessante, e realmente funciona como espaço de fala, para aliviar muitas angústias. Do qual relata a dificuldade no relacionamento com a mãe, ao mesmo tempo a dificuldade de lidar com a perda, com o luto.

Isso realmente funciona na vida real.

O filho, Peter Graham, em vista da sua imaturidade emocional, como consequência da sua construção psíquica, é representado com dificuldade de lidar com as responsabilidades, utilizando substâncias como álcool e maconha com amigos, pouco aberto e talvez pouco estimulado ao diálogo com os pais, aparenta uma tonalidade afetiva triste, por vezes me sugeriu indiferença nas relações familiares.

Logo no início também, uma cena emblemática é uma casa de bonecas, onde o diretor nos leva através da mãe, a uma casa de boneca, em que a avó alimenta o bebê e a mãe está ao lado da cama tentando alimentar. Talvez para nos levar a interpretar como a mãe foi cerceada pelo desejo da avó, na criação dos filhos, e que será retornado mais para o final, quando a mãe expõe ao filho, em uma cena estranha e bem tensa, que não quis tê-lo, que iria abortar, mas a avó não deixou.

A filha, Charlie Graham, que apresenta-se como solitária, submetida aos desejos maternos. Dificuldade de se relacionar com amigos, com o meio, e sentindo o luto da avó que tinha um vínculo afetivo muito grande.

Dentre as muitas cenas que vagam pelos fenômenos psíquicos, misturado a temática mística.
Me deixou intrigado algumas cenas em que na leitura fenomenológica, Charlie tem uma percepção através do sentido da visão, da avó já falecida, no qual no pensamento caberia um delírio místico. Ou a de Peter, vendo uma representação de sua imagem no espelho, e é interessante como o diretor também representa os sintomas conversivos de Peter, como situações que se apresenta com falta de ar e outros comemorativos, reproduzindo sintomas de grande carga afetiva, e que não são intencionais.

Na cena da visão da avó por Charlie, podemos trazer pela teoria da psicanálise do qual não tenho um domínio seguro da doutrina, sou apenas um estudante e não sou psicanalista, acredito que o esse saber é importante na minha formação e compreensão sobre minha prática clínica como psiquiatra. Acaba sendo um exercício utiliza-lo nessas interpretações.

Pelos menos podemos ilustrar essa cena. Trazendo a explicação por Lacan, na tentativa de trazer palavras e símbolos sua compreensão e explicação do funcionamento mental, nesse caso no funcionamento psicótico, onde Charlie quando vê a representação da avó através da sua visão, do sentido da visão, em sua mente, ela realmente vê a avó em sua realidade, esse mecanismo se faz com o retorno da função de pai, ou o significante como traz Melman do significante S1, que não foi simbolizado, retornando no real, daquela realidade, em uma construção delirante para a mente sustentar sua existência.

Em muitas cenas, o diretor brinca com os conceitos de alucinação visual, e representação visual, que são bem diferenciados na Psicopatologia Geral de Jaspers. Tanto com a filha, quanto com o filho.

O fenômeno alucinatório, em sua leitura pela Psicopatologia, teoria que estuda os fenômenos psíquicos conscientes. São construídos através de observações durante a história, que se mantém em comum em diversos contextos de avaliações individuais, ou seja, pôde-se aprendê-los como fenômenos objetivos aos olhos e ouvidos do observador, se mantendo o mesmo em diferentes indivíduos avaliados.

Como por exemplo quando Charlie viu a avó, seria uma a alucinação visual verdadeira?

Teriamos que perguntar a Charlie para diferenciar. Poderia ser uma alucinação verdadeira, ou uma pseudo-alucinação. A diferença é que na alucinação visual verdadeira existe o fenômeno objetivo, tem mais corporeidade, estão no campo da percepção. Na representação, campo das pseudo alucinações, a imagem não está projetada em sua realidade, mesmo assim pode-se ver a imagem que é formada no espaço subjetivo, dando a conotação real. Das duas formas o indivíduo pode ser acometido por um fenômeno na interpretação do sentido da visão, um o indivíduo, uma realmente está no espaço real, outra só no subjetivo. Algumas características da imagem nos ajuda a diferenciar, e a direcionar a clínica, para compreender a realidade daquele indivíduo.

No filme parece que o diretor quis apresentar como uma alucinação verdadeira, com a imagem projetada no espaço externo, com frescor, cores, imagem bem contornada, nítidas.

E não é fácil fazer essa diferenciação na prática, é muito difícil, perguntas fechadas já vem com a resposta do entrevistador, a entrevista é uma grande ferramenta, e um treino contínuo.

Por exemplo, o paciente te diz que está vendo coisas, e fica quieto. E o médico pergunta: você está vendo uma pessoa? Já perde em muito o valor do que aquela subjetividade sendo compreendida na investigação clínica, o médico nesse caso, já sugere ao indivíduo o que ele está vendo, e isso tem repercussão no exame.

Voltando ao filme, uma cena extremamente angustiante, em um acidente que não vou adentrar detalhes, que é a morte da filha mais nova, retornando com o irmão de uma festa que a mãe queria que ela fosse..

Muito tempo que não vejo uma cena tão marcante, e pesada, que joga com nosso caráter. E é recorrente no filme esse jogo com a nossa moral. Nessa cena desde o acontecimento, ao desenrolar do acontecimento, onde o filho se apresenta com fuga da realidade e não responsabilização do ocorrido, retornando como se nada tivesse acontecido, até a mãe encontrar seu catastrófico objeto perdido no carro, um luto de extrema dor, aquele objeto que a mente não aceita perder, não se faz registro simbólico, e que para a temporalidade da mente, de tanta energia que carrega, atraindo tudo em torno dele, como uma gravidade.

No luto a mãe tenta se reconstituir, porém aquele objeto é muito pesado para o pensamento mover, e dar movimento aquela mente. Muitas vezes nesses casos, a mente e o corpo funcionam dissociados, o humor serve ao funcionamento mental, para não lidar com aquele sofrimento, insuportável àquela mente, e se manifesta na desmedida, na grandiosidade, na energia sem fim, como na síndrome maníaca, ou mesmo na inércia, no esvaziamento daquele sujeito, que estava projetado no objeto perdido, na culpa, na moral martirizante que se realiza na esquecida melancolia.

Agora no campo do místico, cada religião tem sua crença dos eventos que percorrem o filme, e que se faz com outros eventos que ilustram o filme para além das doutrinas que podemos utilizar para interpretar no campo do conhecimento, pelo menos o meu, com copos andando, escritos por espíritos metafísicos, e outros eventos ilustrados.

Aqui mora algo que muitos religiosos não compreendem, que as teorias se limitam a compreensão do real por suas perspectivas, e o campo do místico por vezes faz parte quando há sofrimento psíquico. A compreensão da teoria é sobre o ser humano e sua mente, e nenhuma teoria é capaz de apreender o real em sua totalidade. Há muitos acontecimentos que podem fugir a compreensão teórica, não serem passíveis e nem o objetivos dessas doutrinas do conhecimento.

Podemos observar como o roteiro, levado a representação cinematográfica pelo maestria do diretor, vai caminhar por vezes no campo dos conhecimentos sobre o funcionamento mental, e por vezes caminha no campo do místico. Retirei algumas cenas para trazer alguns conceitos, porém dá para discutir muitas outras cenas do filme.

De todas as formas podemos ver como o sofrimento humano, para além e em conjunto com os genes, também pode ser passado por gerações, em sua dinâmica relacional. E que na prática não é tão fácil como no filme, na perspectiva da linearidade temporal que nos é apresentada em algumas horas. O que facilita e é imprescindível na prática é a transferência, porque um saber só tem utilidade se servir ao outro, se serve ao nosso conhecimento e fascínio, serve somente ao nosso narcisismo infantil.

Hereditário é um filme inteligente, visceral, que não é fácil de assistir, e entrega uma obra de arte. Certamente mestres catedráticos poderão discutir muitos aspectos desse filme. Me lembrou Repulsa ao Sexo do Polanski. E por muitas vezes misturando os dois campos, que são extremamente cinzas no meio cultural, alimentando a crença de cada espectador. Eu fiquei perdido no final, nas minhas interpretações, seria parte do delírio de Peter? Ou está no campo místico? Ou mesmo é um problema na codificação da base genética, ou mesmo epigenética?

É isso pessoal! Tentei trazer um pouco das teorias para ilustrar a minha interpretação do filme, e mostrar um pouco de muitas discussões de casos que existe na prática. Por vezes vejo na internet algumas desinformações ou meias verdades que só servem ao desserviço com a saúde e com o conhecimento teorico. Como por exemplo que os psiquiatras inventaram as doenças, remédio só serve a indústria, cura do Alzheimer com magnésio, erro médico pelo sensacionalismo da imprensa.

Tem casos na prática que são tão difíceis, que simplesmente não sabemos, e temos que procurar quem têm mais experiência para nos orientar, ou nos espaços de supervisão, e sessões clínicas. Como toda profissão existem profissionais bons e ruins, procure referências de confiança, a formação do médico, veja se tem registro no CRM do seu estado, no site do CREMERJ, conselho do Rio de Janeiro, você pode consultar pelo número do CRM.

E se for assistir Hereditário, esteja preparado!

Obrigado pela leitura!


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não pude ler o texto todo porque você me convenceu a ver o filme e não quero ter spoilers, mas parece bem interessante, só uma dúvida é terror? pela imagem e sua descrição realmente dá ver que fizeram um bom trabalho de fotografia.


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Acredito que pode ser considerado terror e drama. Um thriller bem psicológico. Show, vale a pena ver antes de ler. Achei bem tenso o filme. Valeu!

Eu li o artigo e decidi que, como não gosto de filmes de terror, pois detesto levar sustos, vou mudar de calçada só para não passar na frente do cinema...:=)

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Esses filmes para quem não gosta é bom mudar de calçada mesmo. Valeu @ronaldoavelino!

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