Uma história da Canção de Coimbra no decorrer do séc. XX (pt. 3)

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Os Anos 40

No principio desta década a Canção de Coimbra parecia viver da transmissão oral (Nunes, 2002). A transmissão da técnica de canto, a aprendizagem dos instrumentos, as afinações, etc., era realizada dos elementos mais antigos ou em fase terminal de curso para os jovens iniciados (Nunes, 2002). “Não-estudantes” como o já referido Flávio Rodrigues (guitarra), ou José Lopes da Fonseca (violão), pelas suas ligações ao meio académico ajudavam, pelo ensino, a “fazer a ligação entre o passado e o presente” na interpretação dos temas (Nunes, 2002). Ambos barbeiros, Na “Sociedade Tradicional Académica”, que segundo António Manuel Nunes (2002) era dotada de “uma sólida coerência jurídico-política, orgânica e institucional”, as narrativas acerca das origens da Canção assentavam em três crenças em partícular:

  • A Canção de Coimbra nascera e evoluíra a partir da regionalização do Fado de Lisboa;

  • Existia uma figura fundacional a quem se atribuía o gesto demiúrgico do acto criador, Augusto Hilário;

  • A Canção de Coimbra confundia-se com o ritual da serenata de cortejamento.


Esta narrativa, sobretudo em relação a Augusto Hilário, acaba por ganhar contornos quase míticos, “pouco importando se tais premissas encontravam fundamentação plena em dados históricos ou musicológicos” (Nunes, 2002). Surge novamente a questão: Fado e/ou Canção de Coimbra? Os cultores da Canção não queriam ser “fadistas”, termo associado aliás às “mulheres da vida” que cantariam o Fado em Lisboa à data do seu aparecimento em 1820 (Castela, 2011). Mas na falta de um leque lexical apropriado “serviam-se do vocabulário repescado directamente no Fado de Lisboa” (Nunes, 2002). Nunes (2002) continua, colocando a questão em termos identitários: como é que se define a identidade da Canção de Coimbra enquanto género musical autónomo, a partir dos referentes musicais, poéticos, instrumentais, vocais e lexicais de um outro género musical que é o Fado de Lisboa?

Os anos quarenta parecem surgir como uma “década pouco estudada” e até “mal amada pela geração de Cinquenta”, que acabaria por considerar este um período de “crise” e “decadência”, de “falta de bom gosto”, “amadorismo”, e da “cançoneta ligeira” (Nunes, 2002). No próprio trabalho de Rui Moreira Lopes (2011), a década de quarenta é como que fundida com a de cinquenta, e no seu conjunto o autor considera este espaço temporal como a “Segunda Década de Oiro” da Canção de Coimbra. Parte do comportamento omissivo que se verifica relativamente a este momento passará pelo “mutismo” dos seus agentes e respectivas propostas, já para não falar de um certo sentimento de inferioridade relativamente aos “grandes monstros” dos anos vinte (Nunes, 2002). Por outro lado, as linhas estéticas seguidas pelos seus agentes, não configuraram um “momento individualizador e paradigmático em termos da História da Canção de Coimbra”, mas antes uma “evolução na continuidade” (Nunes, 2002). Por último, a ausência de registos fonográficos, dos autores e intérpretes da época, no decorrer da mesma, poderá constituir uma última razão para o obscurecimento dos mesmos, e para permitir uma olhar, critico, e talvez injustificado, sobre os anos quarenta (Nunes, 2002). Só mais tarde, nomes como Manuel Duarte Branquinho, Ângelo de Araújo, Jorge Gouveia, Napoleão Amorim, Camacho Vieira, João Bagão, Alexandre Herculano e José Amaral viriam a registar fonograficamente interpretações e temas originais.

A questão politica não poderá ser deixada de lado durante e a partir desta época. O Estado Novo era já uma realidade em Portugal, e “a Universidade estava profundamente comprometida com a ideologia salazarista”. A Drecção Geral da AAC vive de Comissões Administrativas nomeadas pelo governo, facto que leva às contestações surgidas em 1945 com a lista de reviralhistas de Francisco Salgado Zenha, Manuel Barrigas de Carvalho e Arquimedes Silva Santos (Nunes, 2002). As demolições no Bairro Latino para a construção de novos edifícios universitários, e a consequente expulsão dos seus habitantes para as periferias da cidade, ou a campanha presidencial de Norton de Matos em 1949, agitam uma pretendida estabilidade politica por parte do Estado Novo (Nunes, 2002). Uns simpatizavam com o regime (António Carvalhal, Armando Goes, Armando Simões, Antero da Veiga, Paulo de Sá e José Carlos Moreira), outros não incomodaram nem eram incomodados, alinhando pelo “situacionismos reinante” da altura (Nunes, 2002). E outros nomes certamente se opuseram, ou pelo menos não aderiram, às políticas do governo , como foi o caso de Walter Figueiredo, João Bagão, Artur Paredes, Carlos Paredes, José Paradela de Oliveira, Afonso de Sousa e José Lopes da Fonseca (Nunes, 2002). A própria Balada da Despedida do 5º Ano Médico, estreada no Avenida a 6 de Abril de 1949, cuja letra era da autoria de Arquimedes Silva Santos, em que “se aludia sibilinamente às demolições em curso na Velha Alta” (Nunes, 2002).

Em termos musicais, parecia existir efectivamente um “crise de cantores” desde 1935 (Nunes, 2002). Na primeira metade da década Manuel Martins Catarino, mais conhecido por “Julião”, foi a voz de maior destaque, terminando a sua formação em Letras entre 1944-1945 (Nunes, 2002). Na segunda metade Napoleão Ferreira Amorim, Anarolino Pacheco Fernandes, Mário Luís Mendes e Augusto Camacho Vieira asseguram o canto (Nunes, 2002). Por sua vez, nos instrumentos destacam-se Fernando Cabral e Fernando Regala nas guitarras e Joaquim Carvalhal no violão, sobretudo até 1942, e José Amaral (2ª guitarra) e António Carvalhal (guitarra) constituem um grupo, juntamente com Mário Castro na voz, até 1945 (Nunes, 2002). No ano de 1948 surge um novo grupo formado por Manuel Branquinho (voz), Fernando Abreu de Lima (guitarra) e Carlos Louro (viola). O ensino é levado sobretudo por três barbeiros futricas: José Lopes da Fonseca (violão) cuja barbearia se situava junto à Igreja do Salvador; Fernando Rodrigues da Silva, que “guia inúmeros aprendizes na barbearia da Associação Académica”; e o já referido Flávio Rodrigues da Silva, irmão deste último, é importante ensinante de guitarra entre aproximadamente 1935 e 1945, é progressivamente afectado pela tuberculose, recebendo apenas casos pontuais entre 1947-1950 «que lhe eram remetidos pelo irmão para os grandes “tira-teimas”» (Nunes, 2002).

Por último, são de destacar antigas formações e actividades levadas a cabo por antigos estudantes. Paulo de Sá, José Carlos Moreira e José Archer continuam “muito activos em festas particulares, reuniões de curso, festas populares, e féras estivais no Hotel da Praia da Granja” (Nunes, 2002). A formação Artur Paredes/Carlos Paredes/Arménio Silva actua mensalmente na Emissora Nacional, e no Teatro Avenida de Coimbra em 1940, 1945 e 1950. Aquando das actuações destes últimos em Coimbra, faziam-se acompanhar por Afonso de Sousa, Paradela de Oliveira, Armando Goes e José Roseiro Boavida (Nunes, 2002).

Desta década, segundo António Manuel Nunes (2002), pode ainda dizer-se que, “tendo continuado a interpretar o repertório sobrevindo da tradição, produziu os seus próprios clássicos, a par de outras conposições menos conhecidas” (Nunes, 2002).
Fim da terceira parte.

Veja também:

Uma história da Canção de Coimbra no decorrer do séc. XX (pt. 1)

Uma história da Canção de Coimbra no decorrer do séc. XX (pt. 2)

Audio:
Rapsódia Nº2 - Artur e Carlos Paredes (pai e filho)
Balada do Estudante - Manuel Branquinho

Obras Citadas:


Castela, L. P. (2011). A Guitarra Portuguesa e a Canção de Coimbra: Subsídiospara o seu estudo e contextualização. Dissertação de Mestrado em Estudos Artísticos (Estudos Musicais), apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Franklin, A. (2 de Janeiro de 2012). Diário As Beiras. Obtido em 30 de Maio de 2013, de www.asbeiras.pt: http://www.asbeiras.pt/2012/01/fado-de-coimbra-e-patrimonio-da-humanidade/
Lopes, R. (2011). José Dória. Obtido em 3 de Junho de 2013, de Universidade de Coimbra: http://www.uc.pt/antigos-estudantes/info/cancao_coimbra_folder/cancao_coimbra_docs/jose_doria
Lopes, R. P. (2011). A Canção de Coimbra como Património Imaterial. Trabalho elaborado no ânbito da disciplina de Património Cultural, do Curso de 2º Ciclo de História, Especialização em Museologia.
Pelouro da Cultura-AAC. (2002). Canção de Coimbra: Testemunhos Vivos. Coimbra: Coimbra Editora.
SF/AAC. (s.d.). Ínicio. Obtido em 01 de Junho de 2013, de Secção de Fados da AAC: http://seccaodefado.net/home.php?module=inicio

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