Medicina, arquitectura, e poder: Do hospital “conventual” medieval, à moderna medicina hospitalar (pt. 1)

in #pt6 years ago

Introdução

Este post (tripartido) procura analisar, brevemente, a criação e recriação da arquitectura hospitalar, assim como das práticas desenvolvidas no seu interior, no que respeita ao seu impacto na saúde e na sociedade, desde a sua forma medieval e religiosa, até ao hospital moderno da primeira metade do século XX.

Partindo do artigo de Adrian Forty (1980), a respeito dos usos sociais e médicos da arquitectura, na formação do hospital moderno, em França e Inglaterra, e dos argumentos de Foucault sobre o nascimento da medicina moderna como sendo uma prática “que tem por background uma certa tecnologia de corpo social”, e como esta tecnologia pode, foi, e é utilizada para um condicionamento comportamental dos indivíduos.

Procurar-se-á ainda, perceber como ocorreu uma certa transferência de poder de determinadas entidades para outras (do poder religioso para as autoridades seculares; do poder “decisivo” da arquitectura na saúde, para a dependência tecnológica da medicina moderna), e de como este processo em muito ajudou a classe médica a atingir a posição de prestígio social que ainda na contemporaneidade lhe é reconhecida.

Hospital como espaço terapêutico?




“É uma graça do Espírito Santo, cuja Unção apaga os pecados ainda não expiados bem como os vestígios do pecado, alivia e conforta o ânimo do doente, despertando nele uma grande confiança na misericórdia divina. Assim confortado, o doente suporta melhor os incómodos e sofrimentos da doença e resiste mais facilmente às tentações com que o demónio o assalta […] e até, se isso for conveniente para a salvação da sua alma, obtém por vezes a saúde do corpo”. in “De extrema unctione”, 1696.

O hospital, na sua arquitectura, estética, e nos seus usos ou funções, passou por uma série de profundas alterações nos dois últimos séculos, segundo Forty (1980), e contínua, contrariando um certo senso comum, alegando que as alterações ocorridas na arquitectura hospitalar não são, obrigatoriamente, uma consequência das descobertas científicas da época. Qualquer teoria médica, isolada, não é suficiente para definir os moldes da construção e desenho do Hospital (Foucault, 1979: 100). O modelo hospitalar, dentro de uma determinada conjuntura, de um determinado contexto social e histórico, é definido, isso sim, pelos usos que os defensores do mesmo lhe procuram dar.
Se os usos do hospital se foram alterando e modificando, a sua função de curar os doentes seria transversal a todas as épocas, ou seria subjugada por outras prioridades?
De acordo com Forty (1980: 62), até ao final do século XIX, os hospitais eram concebidos, quase sem excepção para os pobres, sendo a medicina domiciliar reservada àqueles que a pudessem pagar. Se o sucesso na recuperação dos doentes fosse maior no hospital, não deveria este último ser o primeiro ao qual recorreriam as classes mais altas e financeiramente mais capazes?


Os hospitais existiam, na Europa medieval, motivados pelo dever cristão de levar a cabo actos de misericórdia, ocupando-se de acolher os doentes (Forty, 1980: 63). No entanto, continua Forty (1980: 63), a sua prioridade não era a da recuperação física dos indivíduos, mas, em primeiro lugar, a salvação espiritual dos que levavam a cabo as tarefas de “cuidar dos doentes”, e aqueles que de alguma forma beneficiavam o hospital, materialmente. Em segundo lugar, “administrar” a salvação espiritual aos doentes, era de vital importância, reflectindo-se na disposição das camas: todas elas deveriam possibilitar a visualização ou pelo menos a audição das cerimónias religiosas levadas a cabo (Forty, 1980: 63). A saúde física ficava para segundo plano, aos cuidados do “pessoal caritativo”, que procurava a própria salvação espiritual, e de uma equipa médica variável, cuja presença no hospital não era obrigatoriamente frequente. Além disso, o médico estava dependente da autoridade religiosa que o podia despedir, se assim o entendesse (Foucault, 1979: 109).


O Charité Hospital de Paris, já em 1788, foi um excelente exemplo de como a importância da presença de um médico, era muito diferente daquilo que é hoje, no hospital moderno. Apresentava, para duzentos e oito pacientes, cinquenta monges e noviços, mas apenas um médico e um cirurgião com sete aprendizes, ocupados com os cuidados de saúde, propriamente ditos (Forty, 1980: 63). O hospital e as práticas medicinais da Europa medieval, são duas realidades que só se interceptam superficialmente, não constituindo o hospital, nem um espaço de cura, nem um território de domínio médico, mas sim de salvação espiritual, para os caridosos, benfeitores, e doentes, de alguma forma relacionados com algum hospital.




Para além da sua pretensão espiritual, a instituição hospitalar, constituía ainda uma ferramenta de acção sobre a sociedade, acolhendo os doentes, exclusivamente os pobres, por se compreender que os mesmos, pela sua carência material, e pela sua condição de enfermos, constituíam um perigo para a saúde no espaço público (Foucault, 1979:101). O pobre doente é assim retirado do meio comum dos “sãos”, excluído para um espaço que a ele é dedicado, no sentido de o assistirem material e espiritualmente, nos últimos momentos da sua vida (Foucault, 1979:101). Segundo Foucault (1979:102), o próprio hospital era na altura conhecido como “morredouro”, onde não se curava, mas sim, onde era realizada a preparação para a vida eterna, “a transição entre a vida e a morte”.

Bibliografia:

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Outra leitura recomendada: https://nationalpost.com/opinion/the-religious-hospital-problem

Conc. Trid., S. XIV in Paulo VI, Papa. “Unção e pastoral dos doentes”. www.liturgia.pt/rituais/Enfermos.pdf (acedido a 27/01/2012).

Forty, Adrian, 1980. “The modern hospital in England and France: the social and medical uses of architecture” in King, A. (Ed.), Building and Society, Londres, Routledge, pp:61-93.

Latour, Bruno, 1987. “Science in action”: Centres of calculation. Open University Press, England, pp: 215-258.

Foucault, Michel, 1979. Microfísica do poder. Organizaçao e tradução de Roberto Machado. Edições Graal, Rio de Janeiro.

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