Debaixo do tapete # In: O mapa de autoestrada

in #pt6 years ago (edited)

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“O Sô Pzdente, agora não pode atendê-la porque tá numa stuação”- foi a recepção grasnada que recebi da Secretária, muito ciente da sua posição social cuja grandeza combinava bem com o busto vitoriano.
Levantei ligeiramente as sobrancelhas, como sempre faço quando são necessários três segundos de contenção e baixei mentalmente dois tons na voz para insistir gentilmente:
"Mas está à minha espera… está combinado a esta hora" – sem que a referência tenha beliscado minimamente a firmeza da sua convicção.
Sentei-me e aguardei pacientemente, mas ao cabo de vinte minutos, bem sabendo estar numa terra em que nem uma mosca faz mais do que um voo no intervalo de meia hora, acerquei-me da criatura e fiz-me lembrar com um sorriso alvar e significativamente descontente.
" Bom então sendo assim, vou embora e depois ligarei ao Senhor Presidente a indicar que compareci na hora marcada mas que a senhora não me anunciou" – informei.
Pressentindo o contra-ataque eminente à sua alta posição social, ensaiou um trejeito de fastio com os lábios franzidos, e abdicando do zelo canino com que guardava os umbrais do gabinete (como se no lugar do Sô Pzdente estivesse uma joia da Coroa), lá penetrou, majestosa, no altar do poder autárquico, donde saíu segundos depois, de marcha-atrás, com uma reverenda vénia que quase a deitou ao chão pelo desequilíbrio do tremendo busto, a acenar-me, ligeiramente corada, para entrar.
E foi assim que comecei a minha vida profissional por conta própria.
Corriam-me ainda os vintes anos nas veias, quando eu aterrei naquela pequena ilha de tão justo cognome, pois concedeu-me os anos de ouro da matriz profissional que me vincou nos anos vindouros.
Nesta época de beatitude floresceu em mim (a pretexto duma tentativa revolucionária com o inovador ingrediente da distância) a esperança de recompor um casamento votado ao fracasso, pois com tanta altitude e longitude pelo meio, há sempre a crença de que as pessoas caem em reflexão, se ressentem da solidão e valorizam melhor o que tinham e quem tinham. Mas depois acontece a vida e nada funciona assim.
Ausentes os gritos, as discussões, a ansiedade e o arrastar penoso do desalento das manhãs, foram tempos de sossego emocional em que a vida me cheirava a felicidade prometida, tanto, que por vezes precisava de lhe escapar, estrada fora rumo à Calheta no meu Peugeot 205 azul metalizado, a transbordar de acelerante alegria e a berrar sobre a batida fulgurante do premonitório “Alone” dos Bee Gees:

… ”So I'll play,
I'll wait
'Cause you know that love takes time”…

Ao volante do meu pequeno DeLorean e com o vento a despentear-me as preocupações, eu descolava do passado de má memória e numa espécie de transe esvoaçava sobre os campos solitários, as pequenas casas, as dunas da praia, os picos agrestes e todas as misérias e sombras, numa viagem ao futuro e sem regresso.
Depois voltava para fazer escrituras, contratos, divórcios, interrogatórios, partilhas, testamentos, pareceres, recursos, e toda a panóplia de tarefas associadas à legalidade e à burocracia, para as quais a ilha inteira me procurava, roubando-me devagar a privacidade, o sossego e o tempo livre.
Por aqueles anos ensaiei-me de trintona em sóbrios tailleus e salto alto, ditei as minhas regras, estabeleci-me profissionalmente, fortaleci-me como pessoa e senti-me acolhida num universo integrador, em que ninguém me restringia nem maltratava ou decepcionava. Saltitei por festas e jantares, mascarei-me nos carnavais e pela primeira vez em muitos anos, diverti-me sem receio de ciúmes e daquele sorriso que acabava ébrio num esgar ameaçador de conflito eminente. E dormia com a placidez de quem pode, no corpo, repousar o espírito.
Eu ia recebendo os sinais, mas não sabia decifrá-los. De início era apenas uma falta de ânimo sem razão aparente, que associei ao mau dormir e ao cansaço justificável pelo volume de trabalho, mas que se adensou numa ansiedade insinuante, que me perturbava a concentração e tolhia toda a iniciativa.
A verdade é que sob a seriedade da minha toga, eu resguardei todas as feridas e uma real incapacidade para resolver os problemas e encarar as raízes dessa inabilidade, pois numa sala de tribunal eu sentia-me tão à-vontade com a angústia, o medo e a fragilidade alheias, que de algum modo me convenci da minha própria invencibilidade. Ofuscada de ilusório poder, acreditei sim, que podia mudar de vida, só que a vida já me tinha mudado ao ponto de me perder de vista.
Os alarmes soaram audíveis quando um dia vislumbro uma senhora a descer a rua na minha direção e senti autêntico pânico só de pensar que me podia abordar. Nem sequer a conhecia, por isso compreendi pela primeira vez que alguma coisa começava a ceder na minha sanidade mental. Mas nem assim compreendi o tamanho do fosso que se abria debaixo da minha negra e justiceira toga.
Quando o casamento perdeu a distância segura da insularidade, eu tinha varrido para baixo do tapete todo o lixo emocional que ficou em suspenso durante os três anos em que pairei numa espécie de estado de graça, do outro lado da vidraça frágil da mente. Porque a mente é mentirosa.

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Bonita história, Isabel. Muito bem escrito. 😊

Obrigada. Já faz tempo que não publicava nada... :-)


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