#FILMOTECA – Hereditary (2018) e uma pequena reflexão sobre o terror no cinema
Um grande filme do novo horror, com cenas pesadas e clima de tensão envolvente envolvendo temas como família, doença e temas de maior mistério.
Direção: Ary Aster | Gênero: Terror
Ano: 2018 | Nota no IMDB: 7,3/10
ESSE TEXTO CONTÉM ALGUMAS INFORMAÇÕES QUE PODEM SER INTERPRETADAS COMO SPOILERS (apesar de eu ter evitado colocar as partes vitais da trama)
Como pode ser notado em alguns dos meus últimos textos, ando um tanto desanimado com os filmes de terror. A crítica recai sobre a reutilização incansável dos mesmos recursos para causar medo; as tramas, a sonoplastia, a fotografia... Tudo repetido ad infinitum. Os clichês abundam em quase toda produção há quase vinte anos! Quem acompanha esse gênero reconhece essa característica com facilidade e, naturalmente, cansa dela. É tudo muito previsível e insuficiente. Pode-se dizer que o gênero terror não envelhece muito bem, pois ele está atrelado à capacidade de gerar medo. Bom, o medo é quase sempre o medo de algo, há um objeto que causa medo; objeto que pode ser também um ambiente, uma trama, um envolvimento ou um conceito, elementos que tendem a mudar conforme a época. Se assistirmos um filme antigo de terror, como Wolf Man (1941), por exemplo, por mais que admiremos a estética empregada, dificilmente sentiremos algum tipo de medo ao assisti-lo. Há que se entender que o medo se desloca.
O que significaria implicar na existência de um deslocamento no medo? Isso não diz do medo apenas como fenômeno sociológico condicionado por fenômenos históricos – o medo de uma guerra nuclear e da espionagem durante a guerra fria, refletido nos filmes da época, por exemplo –, mas também psicológico. Se o medo se localiza próximo à Sombra, aos conteúdos reprimidos pela nossa natureza consciente, é natural que ele se manifeste, com a mudança de eras, em diferentes objetos uma vez que o ignorado, o reprimido, também muda de lugar; da mesma forma, serão outros os recursos estilísticos usados a fim de arrepiar a alma com aquilo que há de incômodo em nós. O inconsciente é móvel, assim como a sombra, como o reprimido, como aquilo que se torna temeroso. O que funcionava para uma geração, nem sempre funcionará para outra. Isso é mais real para os filmes que para os livros, talvez porque o livro ofereça um suporte que sustenta a própria imaginação do leitor, que deve enquadrar os próprios conteúdos naquela moldura oferecida pela obra literária. Os livros tratam de acessar camadas mais originais do medo, mais essenciais, fazendo a pessoa projetar no envolvimento imaginativo aquilo que lhe ativa esse fenômeno. No caso do cinema, o tipo de mídia implica em oferecer todo o conjunto pronto. Como a imagem e o som já são oferecidos, a elasticidade da imaginação acaba sendo limitada. Portanto, o diretor precisa encontrar um modo de fazer funcionar, com aquele público de sua época, coisas como trama, fotografia, sonoplastia e, claro, os mecanismos que engatilham o medo.
É nesse ponto que, finalmente, posso introduzir o filme Hereditário (Hereditary) no texto. Como A Bruxa, o filme parece compor um grupo seleto de filmes recentes que vêm dando novas diretrizes para o gênero de terror, fugindo daquelas narrativas já batidas mimetizadas por décadas. Pessoalmente, não andava muito animado com filmes recentes do gênero, ainda mais tendo minhas críticas ao terror psicológico, mas foram tantas as recomendações que me rendi a assistir o grande filme que é Hereditário.
A trama conta sobre Annie, que mora com seu marido Steve, seu filho Peter, de 16 anos, e sua filha Charlie, com 13. O filme inicia com o funeral da mãe de Annie, Ellen. Pouco se sabe dessa avó que morre, apenas que esse evento serve de início para todo o enredo que segue. Um tempo após o funeral, descobre-se que o túmulo de Ellen foi aberto e que Annie a vê em aparições. Annie vai até um grupo de apoio onde desabafa sobre sua situação e revela um quadro de doença mental que afeta sua família e acaba levando à morte seus familiares.
Para contextualizar melhor o leitor, infelizmente seria necessário revelar muito da trama. Sem acabar dando muitos spoilers, acredito que poderia dizer que as relações familiares começam a se tornar problemáticas enquanto age, por trás das aparências, algum tipo de fenômeno que não se sabe se é sobrenatural ou psicopatológico. A linha entre essas duas categorias fica muito tênue, deixando que o telespectador decida o que faz mais sentido para si. Há elementos que colaboram para as duas interpretações. Há o fato de ser mencionado um tipo de doença familiar, e se sabe bem que algumas condições neurológicas podem conduzir a diversos tipos de alucinações visuais; da mesma forma, alguns quadros esquizofrênicos ou mesmo associados a transtornos de humor podem ocasionar alucinações, sejam visuais ou auditivas. Talvez o que fique para nós é que não importa tanto o que está por trás daqueles fenômenos, mas o modo com que se apresentam para quem os vivencia, sendo este o foco de um filme de terror. Vale questionar aqui onde se estabelecem as fronteiras da realidade entre o que é sobrenatural e o que é psicológico e até onde podemos diferenciar ambos dando mais validade a um lado da balança que a outro.
O filme aborda muito mais que os relacionamentos conflitantes dentro de uma família. Ele toca sutilmente em alguns pontos sensíveis do sentimento humano: como se dá a relação entre pais e filhos em um nível de distorção psicótica (uso esse termo aqui pela sua força e não para diagnosticar qualquer coisa); que medos irrompem na mente de um jovem quando, numa idade crítica, sua referência materna perde a própria referência da realidade? E se ela tiver motivos concretos para tal? E a pequena Charlie, criança de aparência peculiar e hábitos estranhos – tlac –, que sentimentos invoca no telespectador ver o desfecho de sua estória? Indo ainda mais longe, o filme evoca a presença de demônios antigos, sejam familiares ou não, coisas ancestrais enterradas em páginas amareladas de tomos antigos. Instrumentos goéticos de dissociação de personalidade ou fórmulas absolutas para convocar entes infernais... Paimon!
Além dessa trama interessantíssima, o filme chama atenção por sua execução em matéria de fotografia e sonoplastia. Não só ele é um filme esteticamente belo como consegue criar situações fortíssimas de tensão. É fantástico o modo como ele apresenta as visões, as aparições e os acontecimentos sobrenaturais. Justamente nesse aspecto que Hereditário se diferencia dos demais filmes de terror que, como dito no início do texto, repetem incessantemente velhos clichês. Hereditário rompe barreiras ao criar uma própria linguagem de horror. Essa linguagem é nervosa, tensa, tendo em si um magnetismo para a atenção de quem assiste, mas seu modo de ofertar isso ao telespectador não obedece à antiga fórmula dos jump scares, mas uma abordagem própria para atingir o público. Além do mais, o terror não vem apenas do que parece ser sobrenatural, mas vem também das relações entre os personagens; as discussões, os conflitos, os momentos de emoção escancarados em atitudes emocionais exteriorizadas de modo enérgico. O terror também é familiar... Hereditário.
Ari Aster, o diretor, enumerou entre suas influências para o filme obras como O Bebê de Rosemary, Gritos e Sussurros (Bergman), Inverno de Sangue em Veneza, Carrie a Estranha, Gente como a Gente e o filme O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante. Além desses, declara influência de filmes japoneses de terror. O filme faturou 44 milhões de dólares nos EUA e Canadá e 35 milhões em outros países, totalizando 79.3 milhões, sendo que seu custo foi de 10 milhões. Seu sucesso é perfeitamente justificado por sua qualidade, o que não é sempre o caso para lançamentos. Hereditário parece entrar com tudo em uma nova geração de filmes de terror que rompem com as desgastadas regras do estilo, oferecendo uma linguagem do terror emocionalmente visceral.
Referências
Esse filme é quase hipnótico... Envolvente demais! Sem dúvidas, é um dos melhores trabalhos da Toni Collette.