Os Sete Corpos — Capítulo 1 — Confusão

in #pt7 years ago (edited)

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Olá, pessoal. Talvez alguns de vocês já tenham lido algumas das partes dessa série. Eu estava postando aos poucos neste perfil. O que me ocorreu é que fica bem complicado de acompanhar, então decidi postar com menos frequência, mas com um texto maior. Estou animado com a história e, em breve a continuação pode sair.

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Descrição da foto: vários comprimidos dispostos em cima de uma mão aberta

Abro os olhos assustado com o grito que eu mesmo dei. Somente o silêncio me responde. Mais nada. Uma cama de casal. Em vez de uma pessoa, vejo um frasco deitado ao meu lado. Vários comprimidos espalhados pela cama em uma desordem quase que natural. Aos poucos, me recuperando do choque do despertar, percebo uma coisa — Não faço a mínima ideia de quem sou.

Sinto dores internas e intensas. Meu corpo queima. Olho para as minhas mãos, vermelhas como se o sangue estivesse querendo vazar através dos poros da pele. Estou certo de que isso não é possível. Tento tomar impulso para levantar, mas é inútil. É como se alguém tivesse despejado a cola mais forte do mundo sobre a minha cama, eu tivesse deitado logo em seguida e adormecido. Tento falar algo, mas os meus pensamentos são traduzidos na língua dos gemidos, como uma sinfonia de sofrimento.

Aparentemente, moro sozinho — Até porque, se alguém mora comigo não deve me amar, já que ninguém veio me acudir. Respiro profundamente, me acalmo e tento com todas as minhas forças, mais um impulso. Sem sucesso. Sinto vontade de chorar e não tenho forças para resistir. Simplesmente deixo que as lágrimas escorram por minhas bochechas e pulem para o meu travesseiro. Percebi que impulsos não vão adiantar. CALMA; CONCENTRAÇÃO; FOCO. Olho para a direita e a poucos centímetros de mim, vejo a resposta: O telefone.

É óbvio! Tenho que fazer uma ligação para a Polícia, Bombeiros ou qualquer outra entidade que possa me ajudar. Arrasto o meu braço até que a minha mão alcance a cômoda à minha direita e a puxo para que o telefone sem fio caia ao meu lado. Com muito esforço, consigo colocá-lo perto de minha orelha e discar o primeiro número que me veio à cabeça. Um (respiração profunda), nove (sinto uma dor forte no indicador e disco o último número com o médio), zero. Ocupado.

Parece que estou participando de um programa com pegadinhas de humor negro que as pessoas assistem para verem as outras sofrendo, enquanto estão sentadas em suas poltronas sujas, comendo de maneira porca e rindo como pervertidas que são. Não consigo encontrar outra explicação para um número de telefone de emergência estar ocupado.

Tento mais três vezes. Sem sucesso. Empurro o telefone para longe de mim e tento pensar em outra coisa, quando vejo um pedaço de papel do meu lado esquerdo, sobre a cama e perto do frasco de remédio. Me estico e entorto meu corpo para o lado até conseguir pegar o que parece ser um bilhete escrito com letra de pressa. Coloco-o em uma posição que facilita a leitura e começo:

"Não importa quem esteja lendo isso, só importa que saiba o porquê de minha decisão. Se você me conhece sabe que me culpei pela morte de Ana. Todos diziam que foi um acidente e que pegar no sono enquanto dirigia não foi minha culpa. Apesar de mentirem bem, todos transpareciam o ódio. O ódio por eu ter matado a filha, a irmã ou a prima deles, mas ela era a minha esposa! A droga de um caminhão, meu Deus! um caminhão! Como eu não morri? Por que eu não morri?

Agora não tenho ninguém. Definitivamente ninguém. Meus pais morreram em um acidente quando eu tinha 12 anos, e eu sobrevivi. Carreguei este peso até os 30, quando conheci a mulher mais linda do mundo, o amor da minha vida, mas agora ela morreu também. Agora não quero mais ninguém perto de mim!

Nem família, nem amigos. Não quero matar mais ninguém, não quero sobreviver a mais um acidente e ver as pessoas que eu amo morrendo. Não sei como vou me matar, mas eu vou. Tenho que fazer isso. Meu emprego como servidor público inútil não faz mais sentido e Jorge, meu único amigo, me deixou.

Se ainda existe alguém que me ama de verdade, o que eu duvido, saiba que não quero que chore por mim, não quero que chorem no meu enterro, pois a atitude que tomarei é repugnante e imperdoável.

João Carlos Maciel."

Depois de ler o que aparentemente é o meu bilhete de tentativa de suicídio, fico mais confuso do que emocionado. O nome João, assim como Ana e Jorge, não dizem nada. Nenhum lapso. O sentimento mais forte no momento é a raiva que tenho de mim mesmo por ter me entupido de remédios para me matar e conseguido somente uma sessão de tortura para o João sem memória.

Decido aceitar o desfuncionamento do meu corpo e me limito a olhar para o teto branco como a minha mente. Me identifico com o teto e compartilho um sorriso com ele. Ele não me sorri de volta, mas não esperava reciprocidade. É mais um desabafo mesmo, pra extravasar as emoções da última hora ou minuto — Só depois de me acalmar, percebi que há um relógio de ponteiro na parede que marca oito horas da manhã (o que deduzo pelos raios de luz que invadem o quarto) em ponto.

Um estalo. Meu corpo inteiro começa a formigar e ficar extremamente gelado. Não sei como reagir e, num ato de desespero, rolo para a direita, bato com a cabeça na quina da cômoda vermelha e caio de costas no chão. Outro estalo. O formigamento cessa e é substituído por uma dor aguda do lado direito da cabeça. Pra mim já chega!

Me apoio com os braços e me forço a ficar sentado com o auxílio da lateral da cama. Parece que a dor que estou sentindo na cabeça é tão forte que chama atenção e se sobressai na disputa de dores. Olho para o chão e percebo uma coisa: um fio de linha solto. É do telefone. Deve ter se soltado quando eu puxei a cômoda. O conecto novamente e pego o aparelho.

Antes de discar o número nove depois do um, penso melhor. Com exceção da cachola, o restante do corpo parece se recuperar incrivelmente bem depois de ter me jogado. Tem outra: quando perceberem que eu tomei um bocado de remédios, vão me obrigar a passar por acompanhamento psicológico e não estou preparado para isso. Largo o aparelho no chão e começo a pensar em nada. Não consigo pensar muito sem memória.

Me olhar no espelho pode ajudar a lembrar (penso). Definitivamente ainda não consigo andar. Tenho a opção de dormir até me recuperar completamente, mas o vazio na minha cabeça que ainda dói é muito barulhento. Decido então rastejar até o banheiro, que por sinal, não faço ideia de onde seja. Há duas portas: uma à minha direita, ao lado da cômoda do telefone; e outra à minha esquerda, mais distante. Ambas estão fechadas.

Escolho a primeira, torcendo para que seja a correta. Estico meu braço e, com as pontas dos dedos, puxo a maçaneta para baixo e uso o peso do meu corpo para abri-la. Caio de costas e bato a cabeça no piso, que começa a doer um pouco mais do que o nível insuportável. A luz acesa no quarto invade o segundo cômodo que ficará na minha nova e vazia memória. Encaro novamente o teto branco, meu novo amigo, mas dessa vez ele tem algo de diferente: marcas escuras, de tom esverdeado, que revelam que provavelmente eu não sou muito cuidadoso e deixei o mofo tomar conta do que deduzo ser o banheiro por causa do forte cheiro do que estranhamente consegui identificar como o de sabonete molhado.

Me esforço novamente para alcançar a maçaneta e deslizar pelo chão gelado e dou uma boa olhada ao redor. Um vaso sanitário marrom com a tampa abaixada; um balcão vermelho com tampo de granito e um espelho colado na parede acima dele; uma banheira branca. O espelho parece um desafio impossível, por enquanto, mas a banheira pode ser uma boa ideia, pois o suor escorre por todo o meu corpo e faz com que eu me sinta imundo.

Entro com o apoio do vaso sem me preocupar de ainda estar vestido, abro os registros de água quente e fria até que ela deixe quase todo o meu corpo submerso, com exceção da cabeça. Encosto a nuca na borda da banheira e olho para o meu corpo que mal consigo mover, mas algo impede que eu foque nisso: O reflexo do meu rosto.

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Descrição da foto: Homem em baixo d'água com os olhos fechados e apertados. Expressão de agonia.

Fico surpreso ao ser flagrado por mim. Balanço e sou deformado pelos movimentos da água. Um aspecto opaco e pálido esconde minha pele parda ao mesmo tempo que, em alguns pontos de minha face percebo um rosa escuro, parecido com o que vi em meu braço logo depois de acordar.

Esse aspecto quase mórbido esconde as olheiras profundas e escuras e dão lugar a uma uniformidade sem padrão nenhum. Eu pareço alguém irreconhecível, pelo menos para mim. Sou como uma pessoa que esbarra em você na rua.

Um rosto que logo será esquecido, guardado numa parte empoeirada da memória em uma caixa qualquer. Nariz afilado; lábios finos e de um marrom muito claro; olhos castanhos, pequenos e profundos; orelhas que não merecem uma descrição; os cabelos pretos e bem curtos, quase que praticamente secos. Esse é João. Este sou eu!

Com um impulso jogo o resto do meu corpo para dentro d'água. Fecho os meus olhos e não consigo enxergar o "nada". Em vez disso, como se eu estivesse de pé ao lado da banheira, vejo João em uma tentativa desesperada de fazer algo sem saber o porquê. Não sinto mais as dores e não tenho corpo. Flutuo sobre ele e consigo perceber as marcas e cicatrizes em sua pele por debaixo de suas roupas.

Consigo imaginar uma história para cada uma delas e me divirto com isso. No antebraço direito, uma lembrança do dia em que tentou reagir a um assalto e descobriu que facas podem machucar bastante. Na coxa, uma queimadura causada pela queda de uma panela com água quente quando era jovem. Em vários outros pontos, fragmentos da história do acidente contada na carta de suicídio.

Tudo aquilo era muito belo. Histórias contadas por meio da dor. Queria ficar ali por mais tempo, mas eu estava ficando sem ar. Sinto meus olhos arderem no contato com a água quando os abro e busco a superfície com a boca. Inspiro com toda força que me resta e expiro ofegante. Puxo e solto o ar em ritmo acelerado, que vai diminuindo até normalizar e depois ficar praticamente imperceptível, no modo automático.

O prazer que sentira há pouco torna-se uma confusão raivosa. Não tenho ideia de como sair dessa situação. Minha falta de controle me apavora e decido tentar me levantar. Com muito esforço, principalmente por conta das roupas agora encharcadas e pesadas, consigo apoiar-me nas bordas da banheira, colocar um pé depois do outro para fora e caminhar até a porta com a ajuda de minhas duas grandes amigas: pia e parede.

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Descrição da foto: Um celular em cima de uma mesa de vidro

Passo pela porta com certa dificuldade. Minhas roupas pingando e formando poças d'água por onde piso. Vejo um celular em cima de uma mesinha de vidro no canto oposto da cama em que acordei. Minhas pernas estão muito fracas para me dar apoio, então decido engatinhar até lá para pegá-lo. Graças ao apoio da parede consigo ficar de joelhos, depois colocar minhas mãos enrugadas pela água no chão para começar a jornada humilhante até o aparelho.

Sigo desajeitado como uma criança em sua busca por liberdade. Começo a pensar que o primeiro passo que uma pessoa dá em sua vida para ser livre é justamente o primeiro passo. Antes disso, dependente de todos para ir a qualquer lugar, vira a dona de si e começa a entender que pode ir a qualquer lugar, mesmo que seja impedida de alguma forma de ir a alguns deles.

O meu impedimento é a dor. Mesmo assim consigo chegar ao destino , esticar a mão direita e pegar o celular que está desligado. Encosto as costas na parede ao lado da mesa e apenas o observo por alguns segundos. O que eu vou descobrir aqui? Será que realmente quero lembrar de tudo sobre mim? Afinal, foi conviver com isso que fez com que eu tentasse me matar, pra começo de conversa.

Analiso as laterais até encontrar um botão na parte direita. Aperto e seguro de maneira intuitiva até que ele vibra e a tela se acende. Um toque breve que claramente foi criado para grudar em cabeças e dar identidade à marca é seguido pela logo em um fundo vermelho. Mais dois segundos e outra tela é revelada. O celular está bloqueado e é possível ver a data e hora (Segunda-feira, 4 de setembo de 2017, 12h30), além de algumas notificações de mensagens que parecem ser da operadora telefônica.

Enquanto ainda penso em como desbloqueá-lo, percebo na parte inferior da tela o desenho do que parece ser uma impressão digital, encontro um pequeno espaço abaixo dele e coloco o polegar direito nele. O visor pisca e revela uma área com vários ícones. Antes que eu possa pensar no que fazer, o celular vibra e surge uma notificação no topo da tela:

Jorge: E aí, cara, tudo bem? Faz tempo que não nos falamos. Sei que mudei de cidade, mas quero que saiba que estou aqui, tá?

Clico na mensagem e a tela de conversa com Jorge se abre. A linha de texto está solitária, sem nenhum indício de que nos falamos antes disso. Quando coloco o dedo sobre a pequena área branca que diz "digite aqui", letras saltam em forma do que a minha cabeça diz ser um teclado. Fico minutos tentando pensar no que digitar enquanto uma barra vertical pisca pra mim repetidamente. Decido que não sou bom nisso de escrever (coisas que não sejam cartas suicidas) e digito três palavras:

Liga pra mim!

Três palavras. Um grito de socorro. Significam muito se analisar o que aconteceu comigo até agora. Em toda essa desagradável aventura que tive em poucas horas é a única coisa habitando a minha mente. É como um pequeno grupo de astronautas em um planeta inabitado, buscando respostas para perguntas que não existem ainda.

Meu pensamento filosófico é interrompido por um toque agudo e extremamente animado do celular que seguro com a mão direita. O clima de tensão é quebrado de uma maneira muito rude. Na tela, a palavra “Jorge” parece piscar e se transformar em muitas outras. Salvação; resposta; solução; início; alívio. Eu atendo e coloco no viva voz mesmo estando sozinho.

— Alô… João? Você tá aí? — A voz grave sai do auto-falante do aparelho e me atinge como se o som pudesse se solidificar — Me responde, cara. O que aconteceu?

— Alô! — Percebo que é a primeira vez que sai algo que não sejam gemidos da minha boca. O mais interessante é que a voz do meu pensamento é muito diferente da “real”. Essa, que saiu de mim, é muito mais rouca e bonita.

— É pra isso que me ligou? Você me assustou! Já faz tanto tempo que me ignora. Mudou de número, não me liga há meses e manda uma mensagem depois de tanto tempo pra dizer só “alô”?

Involuntariamente começo a pensar com a minha nova voz. A antiga briga por espaço, mas perde forças enquanto formulo uma frase mais elaborada.

— Me desculpe. Queria não ter feito isso. — Foi o máximo que consegui.

— Tem alguma coisa errada, João. Aliás, faz muito tempo que tem muita coisa errada. Eu não tô cobrando que volte a ser como antes, mas você tem que parar de se culpar! — Ele fala com a voz cada vez mais grave adicionando um claro tom de impaciência.

— Na verdade eu tenho algo mais importante pra falar. — Agora é a vez dele fazer o silêncio me torturar. Percebo que ele está esperando que eu fale o “algo mais importante” e continuo. — Aparentemente eu tentei me matar ontem e…

— Como assim? Você tá brincando comigo? Onde você tá? — A impaciência se transforma rapidamente em preocupação. A respiração acelera e faz a voz linda e grave ficar muito mais falha.

— Calma. Acho que estou bem. Esse nem é o problema, na verdade. É bem difícil explicar.

— Fica aí. Você tá no seu apartamento? — As pausas entre palavras indica que Jorge está procurando algo.

— Olha… Acho que sim! — Até agora nenhuma informação de onde estou me indicou isso, mas lembro de um trecho do bilhete de suicídio:

“Se você me conhece sabe que me culpei pela morte de Ana.”

O texto parece ter sido escrito por alguém que sabia existir a possibilidade de alguém conhecido encontrá-lo. É muito íntimo e detalhado para ser destinado a qualquer um.

— Tá bom. Não faça nada. Quando eu chegar aí a gente conversa melhor! — Jorge fala antes de ser interrompido por um ronco forte e alto. A minha memória seletiva me diz ser o som do motor de um carro sendo acionado.

Poderia falar o óbvio, — que não tenho muita opção senão esperar — mas limito a minha resposta a um “Ok!”.

Não faço ideia de quanto tempo ele vai demorar. Considero a possibilidade de simplesmente dormir aqui mesmo, mas talvez não seja o melhor plano. Tenho que esperar acordado até a chegada de Jorge. A roupa úmida incomoda e diminui a minha capacidade de raciocínio. Decido despir-me.

Dou atenção de verdade às minhas vestes pela primeira vez enquanto livro-me do contato com elas. A camiseta de mangas longas ganhou uma tonalidade cinza-escuro depois de encharcada e a gola branca fica presa ao meu queixo, quase como se não quisesse sair de mim.

As calças jeans ainda guardavam algumas coisas nos bolsos da frente: no molho de chaves simples, o chaveiro ostenta pendurada uma foto minha com uma mulher (acredito que seja a minha esposa morta); três moedas douradas; e uma carteira, cheia de documentos molhados e alguns recibos amarelos que esfarelam com o simples toque de meus dedos sobre eles, mas nenhum cartão de plástico com o símbolo de um banco impresso nele.

Coloco esses pequenos tesouros sobre a pilha com duas peças de roupa e fico olhando para ela coberto apenas por uma cueca preta do tipo boxer. É engraçado saber todos esses nomes e definições sem a mínima ideia de quando as aprendi. Em minha pele, as cicatrizes que vi durante a alucinação na banheira estão nos mesmos lugares e têm tamanhos semelhantes também. Toco em cada uma delas, mas o contato não traz nenhuma sensação especial ou memória afetiva.

Olho em direção à cama em que acordei e vejo, do lado oposto ao da cômoda vermelha que gentilmente golpeou a minha cabeça mais cedo, um guarda-roupa que não tinha notado ainda. Uma nova jornada a percorrer. Só que agora estou mais leve e muito mais experiente na arte de engatinhar.

Sinto as dores muito menos intensas. Tento colocar-me de pé e, com um pouco de dificuldade, consigo. Uma nova conquista para o bebê crescido. Calculo cada passo como um equilibrista até chegar na frente do móvel grande e vermelho, que combina com a cômoda e mais nada no quarto todo.

Abro duas das quatro portas e o interior decepciona: duas camisas sociais penduradas em cabides, uma preta e outra branca; dois pares de calças jeans simples, muito parecidas com as que acabei de deixar jogadas no chão; uma camiseta branca, sem estampa; e um par de sapatos pretos. As peças estão espalhadas pelo espaço interno do guarda-roupa, como numa tentativa de disfarçar a falta de conteúdo.

Com um pouco mais de atenção percebo escondida atrás das calças penduradas, uma toalha. Tiro ela do suporte e começo a me enxugar. Dispo-me da cueca e encontro outra, essa é branca e do mesmo tipo, em uma gaveta inexplorada. Sem pensar muito, escolho a camiseta branca e um dos pares de calças jeans e coloco as três peças escolhidas sobre a cama. Fecho as duas portas e abro as outras duas. Parece uma piada.

A segunda parte exibe uma quantidade enorme de roupas femininas: vestidos, calças, shorts, sapatos, sapatilhas, sandálias, camisetas e blusas, todos os itens dispostos de maneira tão organizada que parece uma exposição artística. Tudo parecia estar em seu lugar, menos a caixinha azul empoeirada de madeira, na terceira prateleira da direita.

Sozinha, ela quase consegue demonstrar uma sensação de incômodo, exceto pelo fato de ser um objeto inanimado. Na tampa, algumas palavras talhadas, escondidas pela poeira. Pego a caixa, livro a tampa da poeira com um sopro e consigo ver o que está escrito:

“Cartas do meu amor”

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Descrição da imagem: Foto tirada do fenômeno chamado "superlua", que acontece quando o período de lua cheia coincide com a máxima aproximação do satélite natural com a Terra.

Repouso a caixa na cama, por sobre os comprimidos ainda espalhados. Visto-me rapidamente das roupas secas e, depois de arremessar a cueca que estava usando para o lugar mais próximo de suas amigas úmidas, coloco-me sentado no colchão, encostado à parede. Abro o recipiente e começo a ler.

São dezenas de cartas, poemas e recados escritos por alguém extremamente apaixonado. Quase todas as declarações são datadas no início ou no final. A primeira, de 2005, parece marcar o início do relacionamento entre mim e Ana:

“Eu sou muito melhor agora que você me me aceitou. Estou renovado e espero que possa te fazer feliz para sempre. Sei que você acabou de dizer ‘sim’ para o meu pedido de namoro e isso talvez pareça muito, mas sou assim. Você é a mulher da minha vida e tenho certeza que vamos ser muito felizes. Não tenho nada para te dar, mas fico feliz em saber que tenho você ao meu lado. Espero que eu possa ser o suficiente.

02/08/2005”

Tanta melancolia me leva a acreditar que eu já tinha tendências suicidas nessa época. Fico obcecado com todo o conteúdo em minhas mãos e espalho as cartas pela cama em ordem cronológica, tentando entender a linha do tempo desde o começo até a morte de Ana. Consigo formar toda a história, desde momentos felizes até as brigas. Além disso, é fácil traçar um perfil para essa mulher. Vejo claramente todas as manias, jeito de andar e o sorriso, mas não são memórias. Descrições detalhadas em forma de poesia. Sou um ótimo poeta.

Olho para o relógio. Jão são dez da noite e nenhum sinal do Jorge. Nesse momento me dou conta de que deixei o celular junto às roupas usadas. Com muita cautela para não piorar as dores que já estão indo embora, coloco os meus pés no chão, caminho até o outro lado do quarto novamente, removo o pobre telefone da caverna escura de roupas e desbloqueio a tela. Nenhuma notificação. Será que consigo encontrar outra informação nele? Vale a pena tentar.

Eu só não esperava ser seduzido pelo brilho da lua que atravessa a cortina quase transparente. Vou até a janela e consigo vê-la gigante no céu (minha intuição sobre coisas aleatórias diz que, normalmente, ela é muito menor). É como se isso fizesse parte das várias coisas que não deveriam estar acontecendo, das quais não tenho controle. Nesse caso em particular, não ligo.

Continuo encarando minha nova melhor amiga por alguns minutos, sem compromisso nenhum de formar um vínculo maior ou conversar. Abro a janela para ver melhor o exterior do apartamento e, quando olho para baixo, percebo que não tenho medo de altura. Pelas minhas contas, moro no 15º andar do prédio (o que me faz pensar no porquê de eu não ter me matado pulando daqui). A vista é horrível: a região tem muitos prédios. Eles formam uma muralha, mas por sorte não obstruem a minha visão da lua.

Depois de uma hora observando tudo o que consigo com atenção, volto a sentar-me na cama para investigar sobre mim, agora com a ajuda de minha nova assistente espacial. Talvez por conta da iluminação tranquilizante e o vento fresco que agora é espalhado pelo quarto, sinto minhas mãos responderem aos meus comandos mentais com cada vez menos eficácia e os meus olhos pesarem cada vez mais. Em poucos minutos, apago.

Abro um pouco os olhos. Até parece que acabei de fechá-los para dormir, mas as dores sumiram. Sinto-me renovado e confiante o suficiente para rolar o meu corpo até a lateral direita da cama (com cuidado para não bater a cabeça na quina da cômoda) e ir ao banheiro. Péssima ideia. Dou de cara contra uma parede que, quando abro os olhos de verdade, revela-se azul.

Todo o quarto é azul, com exceção dos móveis que são de uma cor que acabo de denominar “branco-hospício”. Quando levo as mãos ao rosto para tapar os olhos e tentar acordar do que torço para ser um sonho percebo outra diferença: estou negro!

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Preferi nesse formato. Mais longo e extenso, mas melhor para momentos que preciso esperar e fico lendo blogs, ai aproveito e leio aqui.

Interessante que o medo da vida, em alguns momentos, pode levar ao encontro da morte, que é algo de se dar medo e, quando a encaramos em nosso segundo medo, queremos voltar à vida. Mas, será que estamos realmente vivos? Essa é a angústia de todos os dias. Conta mais, quer daqui beber!

Abraços, paz e bem!

Post Scriptum: textos longos ou curtos, eu te leio porque gosto do que escreve. Não leio obras pela quantidade de linhas, mas pelo genuíno prazer da escrita com vontade no meio. Publique mais, mesmo curtos trabalhos. Haverá leitores!

Como sempre, fico feliz por sua presença em meu post. Tentarei postar o máximo

Não sei por qual motivo, mas levei o texto para um lado mais espiritual. Quando li, confesso que me veio um sentimento de vidas passadas, presentes e futuras. Posso estar enganado, mas eu mesmo disse que os textos são feitos para nossa interpretação e utilização em nossas vidas, então, dei-lhe minha interpretação... e quero muito ver o que vem por aí!

Estarei sempre presente e receba meu abraço!

Acho legal essa coisa da interpretação. Se escrevo "copo" em uma folha, ainda há margem para interpretação. Cada um tem uma visão diferente de copo. Dos diferentes copos que surge a beleza da palavra.

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