O fim das ilhas: grupos culturais perdem a força coecitiva - sujeito e sociedade na pós-modernidade PARTE 3

in #pt6 years ago (edited)

O filme A Praia traz uma metáfora bastante elucidativa das mudanças na pós-modernidade.
Sentindo-se entediado com sua vida comum, um jovem estadunidense chamado Richard parte para uma viagem à exótica Tailândia a procura de experiências significativas e entusiasmantes. Surpreende-se ao encontrar uma ilha onde habita uma comunidade secreta que pactua rígidas regras tomadas como condições essenciais para a perpetuação do grupo. A ilha é dominada por traficantes de maconha que usam-na como como local de plantio. Eles toleram a presença da comunidade apenas com a condição de que nenhum de seus integrantes relate a existência da comunidade para outros, evitando a chegada de novos curiosos. Os moradores da comunidades raramente visitam a cidade, apenas o fazem quando é necessário providenciar de alguns mantimentos.

Retomando Bauman, “a tarefa dos indivíduos livres era usar sua nova liberdade para encontrar o nicho apropriado e ali se acomodar e adaptar: seguindo fielmente as regras e modos de conduta identificados como corretos e apropriados para aquele lugar”. Richard encontra naquela ilha seu nicho, uma vida nova e muito empolgante e logo entende e aceita as condições para viver naquele local.

Apesar de todos parecerem muito satisfeitos com a vida exótica na comunidade e formarem um grupo coeso e integrado em seus princípios, acontecem situações que colocam em cheque as regras estabelecidas. A praia é cercada por tubarões que atacam duas pessoas, das quais uma falece na mesma hora. O sobrevivente fica gravemente ferido e só poderá se salvar com atendimento médico. Diante da situação, levanta-se uma questão: salvar o companheiro levando-o ao médico da cidade, o que custará a própria existência da comunidade que não mais poderá manter o segredo; ou deixar que o amigo morra na ilha, garantindo a continuidade da vida na ilha.

A líder do grupo, referência e fonte daquele sistema de regras, reagiu relembrando aos companheiros os seus valores, na tentativa de conservar a coesão e alinhamento em torno dos mesmos. Porém, como diz Bauman, “manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – mesmo assim o sucesso é tudo menos evitável”. Este impasse de ordem moral divide a opinião do grupo, não mais unânime quanto ao cumprimento das regras a qualquer custo. Posteriormente o grupo, já abalado com o dilema de salvar ou não o amigo atacado pelo tubarão, desfaz-se ao passar por uma segunda situação de teste das regras, ainda mais conflituosa, a despeito das tentativas da líder de relembrá-los dos motivos que justificam todo o esforço para manter a comunidade.

A este ponto, cabe lembrar a afirmação de Bauman:

“(...) estamos passando de uma era de “grupos de referência” predeterminados a uma outra de “comparação universal”, em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual está endêmica e incuravelmente subdeterminado, não está dado de antemão, e tende a sofrer numerosas e profundas mudanças.”

Nesta passagem, o autor descreve a dinâmica à qual os grupos, com seus respectivos sistemas de valores, deixam de ser autoreferenciados por uma espécie de isolamento ou homogeneidade anterior à globalização e, a partir dela, são submetidos à comparação universal em um movimento iminente de dissolução.

Na história do filme, podemos sugerir que essa dinâmica está representada na relativização de valores compartilhados coletivamente, pelo fato de que os integrantes possuem outras referências de conduta, já que conhecem o mundo fora da ilha. Ou seja, além do aspecto físico, a comunidade também representa uma ilha de valores, inserida em um mundo onde estão presentes outras tantas referências éticas e morais – outros grupos autoreferenciados. O que mudou na sociedade pós-moderna que se globalizou é resultado do contato entre grupos culturais distintos que colocaram-se mutuamente em questionamento, testando-se de diversas maneiras sobre sua moral, comportamento e costumes.

A isso se referiu Bauman ao afirmar que “hoje, os padrões e configurações não estão mais “dados”, e menos ainda “auto-evidentes”; eles são muitos, chocando-se entre si e contradizendo-se em seus comandos conflitantes, de tal forma que todos e cada um foram desprovidos de boa parte de seus poderes de coercitivamente compelir e restringir.”

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Fonte

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Conteúdo TOP! Gosto muito desse tipo de leitura... Sucesso! 👏🏽👏🏽👏🏽

Parabéns! Você está participando do projeto #ptgram power! O nosso voto é em prol de bons conteúdos e participação ativa na comunidade #pt.

Análise fantástica! Muito obrigada pela reflexão e partilha!

Olá @barbaralisarti, tudo bem? Achei seu post muito interessante e mencionei você aqui. Caso fosse possível, dê uma conferida! Tudo em prol de uma interação a mais em nossa comunidade. Obrigado!


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Seus textos estão bem complexos e ótimos!

Eu diria que foi o caso de Jesus curando dois doentes num sábado... o que é maior? A vida ou o sábado?

Sucesso!


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