O "lugar de fala" de quem não é ouvido

in #pt6 years ago

Tenho uma certa implicância com o termo "lugar de fala", porque me remete a esses neologismos ideológicos que só servem para polemizar e politizar um discurso que nem sempre carrega essa intenção. Implicâncias à parte, vou usar o termo porque ele ilustra bem a reflexão que quero propôr neste texto. Também porque é um termo de fácil entendimento e porque no momento não consegui pensar em outro.

O lugar de fala é basicamente o seu ponto de vista: de onde você percebe a realidade e de onde profere um discurso sobre ela. Todo mundo fala de algum lugar, seja ele privilegiado ou não, individual ou coletivo, público ou privado, objetivo ou subjetivo, prático ou teórico... enfim, estamos sempre num determinado lugar que nos faz ver as coisas de um determinado jeito e também a acreditar que, obviamente, todo mundo está vendo a mesma coisa que eu.

Mas não está não.

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Nossa história de vida, nossa classe social, nossas sortes e azares, as relações sociais que travamos... na verdade uma infinidade de fatores nos leva a estar neste ou naquele lugar. Às vezes por escolha pessoal, por fruto de planejamento nosso mesmo, mas às vezes porque foi onde conseguimos parar depois do duplo twist carpado que a vida nos obrigou a dar.

Do nosso ponto de vista usamos alguns pontos de referência para construir uma ideia ou um discurso e assim explanar o que estamos vendo. Nós, que falamos de um lugar privilegiado em termos materiais e sociais, costumamos ter vários pontos de referência que norteiam nosso olhar e nosso pensamento. Temos inúmeras referências sobre certo e errado, bom e mau, fácil e difícil, autonomia e dependência, liberdade e escravidão, privado e público, subversão e subserviência, direitos inalienáveis e falsos direitos, amor e desamor, proteção e negligência, força e covardia, vida e sobrevida, compaixão e coerção... entre tantos outros construtos que temos constantemente a oportunidade de conhecer, refletir e absorver, tantas vezes quantas necessárias - do nosso nascimento até o último dia, num processo contínuo de internalização e aperfeiçoamento dos mesmos. Isto nos leva a ocupar um lugar de fala muito rico e favorecido, com muitas perspectivas bem articuladas entre si e capazes de direcionar não só o nosso discurso como também as nossas ações para estradas férteis.

Ao contrário de milhões de pessoas, que nascem, crescem e morrem tendo pouquíssimas referências de qualidade durante toda a vida. Não conseguem compreender, lapidar e interiorizar os construtos da mesma forma que nós.

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Essas pessoas, em sua maioria, passam toda a vida vagando por lugares de fala sem ouvintes e sem referenciais que possam ser considerados reais. E aos que bradam "bandido bom é bandido morto", entre outras opiniões semelhantes, eu deixo essa provocação. Longe de mim achar que todo bandido é vítima da sociedade, mas mais longe ainda de mim, achar que todo mundo que quer ver um bandido morto seja um baluarte da justiça e da moral entre os homens. Sei que somos todos suscetíveis a estar no lugar de vítimas da bandidagem e isso é terrível. Mas será que a defesa indiscriminada do genocídio como forma de solucionar problemas sociais complexos não nos põe em um lugar simplista e medíocre, para não dizer coisa pior?

Acredito que possamos todos sermos referenciais uns dos outros, enriquecendo e somando mutuamente - e diretamente - os espaços que ocupamos, sem nunca dar vez aos os mediadores mal intencionados.

Que todos os nossos lugares de fala tenham voz e vez .
E que nossos referenciais sejam cada vez menos o olho por olho e cada vez mais os olhos nos olhos.

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Pessoalmente, vejo no termo lugar de fala uma limitante. Passando a ideia de que lhe permitido falar apenas de uma perspectiva. É uma agressão, do meu ponto de vista, a criatividade. Ainda que não o seja, observando a maneira a qual você deixa claramente definido. É sim, uma ideologia posta. E tem como finalidade colocar uma suposta manutenção na ordem social. Me faz lembrar um famoso funk carioca Eu só quero ser feliz. Andar tranquilamente na favela em que eu nasci. Como se ao indivíduo esse fosse em definitivo o seu lugar de fala. Não havendo a ele a mínima possibilidade de prospectar por algo melhor. E exatamente nesse sentido que vejo o termo agressivo e limitante. Quando a questão "Bandido bom é bandido morte". A fala em si é produto da ignorância e deixa claro que foi formulada por um acéfalo sem conhecimento dos termos aqui aplicados. Pois se o "Bandido é bom"... Jamais seria bandido. Logo não abre hipótese a que seja morto. Bandido é bandido e pronto. Deve ser julgado. Essa fala... É aqui até peço até desculpas pelo termo. Foi proferida por um imbécil e caiu no gosto de uma população maltrada que viu no termo seu bordão de revolta.

Oi Nascimento! Adorei a sua perspectiva sobre o termo "lugar de fala". Você conseguiu tornar mais claro para mim o porque de eu mesma não gostar muito do termo. Agora eu sei explicar kkk. É bem isso mesmo, existe uma mobilidade real ou potencial que deveria ser relevada porém que é ignorada em prol dessa imposição ideológica que você citou. Me incomoda. Até pensei em usar "ponto de vista" mesmo mas como eu quis me referir a pontos de referências específicos nas questões sociais, acabei só conseguindo pensar nesse termo. Obrigada pela colaboração ao texto. Abraço!

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