De Pastores a Imperadores: As invasões Nguni no Sul de Moçambique (pt. 2)

in #fazendohistoria5 years ago (edited)

Os conflictos Nguni na origem da expansão

Da conjuntura anteriormente apresentada, como foi referido, teve lugar a expansão e consolidação económica dos grupos Nguni, que certamente não se desenvolveu igualmente para todos. Será no entanto a partir dos conflitos gerados entre os inkosi Zwide e Dingiswayo, e das consequências que daí advieram, que alguns grupos se viram obrigados a migrar para a zona sul de Moçambique . Gondongwane, nome original de Dingiswayo, era um dos filhos de Jobe, chefe do grupo étnico Mthethwa . Numa disputa com o seu pai, Gondongwane abandonou a sua terra natal em 1785 e partiu para uma vida errante, nas palavras de Rita-Ferreira (1974), onde contactou com as actividades comerciais na Baía do Espírito Santo, e com o sistema militar dos europeus. Ainda nas palavras de Rita-Ferreira (1974), “acabaria por servir de guia a um branco, armado e montado a cavalo, que procurava a tingir Lourenço Marques”. Em território Quabe, o viajante branco acabaria por ser abatido durante um assalto, e Gondongwane, provavelmente reconhecendo o poder, práctico e simbólico, de tais objectos, apoderou-se da arma de fogo e do cavalo e decidiu regressar aos Mthethwa em 1795 . Servindo-se da reputação que tinha acumulado das suas viagens, e dos dois objectos de que tinha tomado posse, apoderou-se do poder sobre os Mthethwa, assassinando o chefe, que na altura era um dos seus irmãos, e mudando o seu nome para Digiswayo. Procedeu posteriormente à reorganização do seu exército e lançou-se na conquista das comunidades na vizinhança, e reservou para si o monopólio das trocas comerciais com a Baía de Lourenço Marques .


Sobe a sua protecção, Chaka, um dos seus induna favoritos, apoderou-se da chefia dos Zulu em 1816 . Depois de alcançar o poder, Chaka reformou diversos parâmetros de natureza militar, nomeadamente no armamento, no sistema de regimentos, e nas tácticas de combate, alcançando ele mesmo grande prestígio nas conquistas que realizou, mas reconhecendo sempre a soberania de Dingiswayo .


No entanto, a vontade ou necessidade de expansão não era exclusiva de Dinguiswayo ou do seu induna, Chaka. Zwide, chefe dos Ndwande, tinha também iniciado um processo de expansão que o acabaria por fazer confrontar Dinguiswayo em 1817-1818, no qual este último acabaria por perecer nas mãos do primeiro . Com a morte do seu chefe, Chaka rapidamente utiliza o seu exército, que não havia participado nos confrontos entre Dinguiswayo e Zwide, para conquistar o território que pertencia ao seu antigo soberano . O confronto entre as forças de Chaka e de Zwide já se faziam adivinhar, pois existia o desejo aliás de vingar a morte de Dinguiswayo, e do seu confronto em 1818-1819, o exército de Zwide saiu esmagadoramente derrotado no rio Mhlatuze . Desta derrota das forças Ndwande, Zwide emigrou com parte das suas forças para a região do Alto Inkomati, e três outros líderes viram-se obrigados a partir para norte com as suas famílias, o seu gado, e pelo menos parte dos seus regimentos militares: Sochangana, N’qaba, e Zwanguendaba . Sochangana revelou-se de vital importância para os assuntos que aqui se procurarão abordar, pois foi ele o fundador do Império de Gaza .


Sochangana e o Império de Gaza

Sobre Sochangana, Rita-Ferreira (1974) apresenta duas versões sobre os primeiros tempos depois do êxodo para o norte, consequência da fuga à vaga expansionista de Chaka. Numa delas diz que Sochangana permaneceu por um período determinado no distrito de Lourenço Marques, juntamente com os outros dois líderes Ndwande, N’qaba e Zwanguendaba . Nesta versão, é a Sochangana atribuído algum poder relativamente aos outros dois, pois continua informando que Zwanguendaba teria sido autorizado a partir do distrito, mas que teria sido posteriormente alvo de uma emboscada por Sochangana, conseguido no entanto, pela força, recuperar os cativos e o gado, e deslocando-se depois para oeste, para território Venda . Simultaneamente, e aproveitando que a atenção de Sochangana estava voltada para Zwanguendaba, N’qaba terá aproveitado para saquear mulheres e gado ao primeiro, que por sua vez, prontamente respondeu a N’quaba, recuperando o que lhe havia sido retirado . No entanto, numa versão de M. M. Motemba, Sochangana e Zwanguendaba terão chegado ao território Venda em simultâneo, partindo depois em direcções opostas . De qualquer das formas, cada uma das versões parece não contrariar a ideia de que, por um lado Zwanguendaba terá passado por território Venda, situado aproximadamente no local onde é hoje a fronteira a oeste entre o sul de Moçambique e África do Sul; por outro, que Sochangana terá permanecido no território a sul do Save, ou pelo menos próximo deste.


Rita-Ferreira (1974) refere ainda que Sochangana teria atacado de surpresa as terras de Tembe, na Margem sul da baía, em 1821, abandonando o a ocupação agressiva após ver satisfeitas as suas exigências em missangas e manilhas de cobre, muito valorizadas já nas trocas comerciais, que os Nguni haviam monopolisado, com a Baía de Lourenço Marques. Em 1826, Sochangana veria as suas hostes aumentadas por um fluxo de refugiados do território Nguni de origem Ndwandwe, após a definitiva derrota do sucessor de Zwide, Sicunyane, contra as forças de Chaka .


Os relatos dos acontecimentos, que se sucederam, e que Rita-Ferreira (1974) inclui na sua obra, são divergentes mas, no entanto, todos eles referem um factor adverso à economia tradicional nguni, e que por isso estes não estavam realmente familiarizados e preparados para conviver com o mesmo: as tripanossomiases. Como foi anteriormente referido, o território Nguni no período pré-expansionista encontrava os seus limites com o território Tonga, e estas fronteiras políticas coincidiam, grosso modo, com a fronteira entre o território liberto da mosca tsé-tsé e o território infestado pela mesma. O próprio David J. Webster (2009), que realizou trabalho de campo no território Chope entre 1969 e 1976, referia que este grupo étnico que habitava entre a Baía de Inhambane e o rio Inharrime, estava impedido da criação de gado bovino pela prevalência desse insecto no seu território. Segundo Dioclesianos das Neves , Sochangana teria-se mudado para Cossine, entre o vale do Limpopo e o rio Mezimchopes, mas teria abandonado este território por causa das tripanossomiases, pelo gado que lhe fez perder. Por sua vez Santos Peixe, segundo Rita-Ferreira (1974), defende que esta migração de Sochangana teria resultado de uma fuga aos regimentos de Chaka. Este ataque de teria origem num pedido que Somapunga teria feito ao Inkosi Zulu, depois de Sochangana ter mandado executar o irmão do primeiro, Chicunyana, por suspeita de traição . O exército de Chaka ter-se-ia “aventurado” nas terras insalubres e grande parte haveria perecido graças à doença e outros tantos se veriam obrigados a partir em retirada, ao passo que Sochangana e os seus súbditos já se haviam deslocado para junto da Lagoa Limanzé . Ainda na obra de Rita-Ferreira (1974), Sansão Mutemba refere, a partir da tradição oral, que as forças de Chaka e Sochangana não chegaram a encontrar-se em grande escala, pois o efeito das tripanossomiases sobre o exército do líder Zulu partiu em retirada antes de se encontrar com as do seu adversário. Por sua vez, Manjobo, induna de Sochangana, “declarou a Gomes da Costa que aquele conseguiria bater os regimentos que Chaka havia envia em sua perseguição, e que após este combate o imperador de Gaza se haveria estabelecido em Nonoquianique” . A verdade é que, para Rita-Ferreira (1974), as sucessivas deslocações de Sochangana deviam-se à tentativa deste diminuir as probabilidades de um confronto em larga escala com os regimentos de Chaka, e posteriormente com o sucessor deste, Dingane. Henry Junod acrescenta ainda que os próprios guerreiros de Gaza se submeteram às tatuagens características dos Tsonga para assim puderem passar despercebidos pelas forças que os perseguiam. No entanto, um encontro de proporções consideráveis teve lugar em 1828, como consequência da campanha que Chaka havia organizado em honra da morte de sua mãe em 1826 . As forças do inkosi Zulu foram vencidas, e aquando do regresso das mesmas, parecem ter recebido com alívio a notícia do assassinato de Chaka, nesse mesmo ano, numa emboscada elaborada pelos seus dois irmãos .


Após este confronto, Sochangana estabeleceu-se durante alguns anos na margem esquerda do Limpopo, onde mais tarde viria a ser a capital do Império de Gaza, Chaimite . A tradição oral, por sua vez, coloca na margem direita do Limpopo, Chiduachine, a povoação sagrada onde residiam as viúvas do seu pai . Os regimentos de N’qaba terão descido do norte do Save e obrigado Sochangana a retirar-se para Chiduachine, que, após a retirada das forças inimigas, se relançou na tarefa de submeter as etnias autóctones sob o seu comando, tendo conseguido rapidamente a vassalagem dos Makuakuas e de parte dos Chope .


Movendo-se novamente em direcção ao norte, o chefe máximo do Império de Gaza invadiu as Terras da Coroa em Inhambane, em 1834, que resultou no massacre dos aproximadamente 280 homens, incluindo o governador . Este movimento em direcção ao norte poderia ter como causa, por um lado o desejo de retaliar N’qaba após a já referida invasão, por outro poderia ter surgido como uma fuga dos regimentos Zulu que, seguindo ordens de Dingane, atacaram Lourenço Marques em 1833, executaram o governador Dionisio António Ribeiro a 13 de Outubro, e ocuparam o território a sul do Incomáti . A verdade é que continuando em direcção ao norte, atravessou o rio Save e entre 1836-1837 enfrentou e conseguiu derrotar N’qaba, próximo da fronteira entre o concelho de Mussorize e a actual Rodésia . Regressou ao vale do Limpopo cerca de dois a três anos depois, devido a um surto de varíola que dizimou parte dos seus súbditos .


Próximo do ano de 1840 recebeu o cognome de Manucusse . Nesse mesmo ano moveu definitivamente a capital do seu Império para Chaimite, na margem esquerda do Limpopo, e recebeu um emissário do governador de Inhambane . Dois anos mais tarde enviou indunas e respectivos regimentos, sob o seu comando, invadirem novamente o território a norte do rio Save, cuja vassalagem dos povos autóctones não foi difícil tal era a reputação dos Nguni resultante das acções anteriores . Ainda nesse ano devastou os prazos de Sofala e sujeitou o estabelecimento português ao pagamento de tributo . A adicionar a isto, em 1844 os induna do Império passaram a visitar todos os anos a região dos prazos a sul do Zambeze, sujeitando ao pagamento de tributo os senhores e os habitantes livres da região . Rita-Ferreira (1974) acrescenta que os registos portugueses da altura referem nesta mesma época e local, Muzila, um dos filhos de Sochangana.


No ano de 1853, delegou nos seus filhos a responsabilidade de governar os territórios mais longínquos do seu Império, e desenvolveu relações “amigáveis” com os Swazi, Ndebeles e Portugueses, recebendo embaixadas, e sujeitando estes últimos à vassalagem e ao pagamento de um tributo anual, parecendo reconhecer a importância que as trocas comerciais, com portugueses e não só, tinham para os seus súbditos . Sochangana, o primeiro monarca de Gaza, acabaria por falecer no ano de 1858.

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Muito obrigado!

Damn, esta é uma parte da História de que nunca tinha ouvido falar... E eu tive História até ao final do 12º ano.

Falta a terceira parte, que publicarei ainda no fim de semana, e fala ainda mais de Portugal! E obrigado pelo comentário!

Muito interessante @martusamak ! É mesmo este tipo de conteúdos que procurava! =D

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Boa Grande Leitura
Vou ler toda esta serie religiosamente.

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