Curta história do conceito de "cultura"




Cultura...

O que é?
Como a definiria?
Para que serve?
De onde vem esta ideia muitas vezes geradora de conflitos, de justificação para a continuidade de tradições fundadas na violência, e muitas vezes usada como arma de arremesso contra o "outro", o desconhecido...


Nesta discussão, talvez um perspectiva histórica sobre os usos deste conceito e seus significados seja importante para compreender a “natureza” do mesmo. Não sendo de todo exclusivo quer da antropologia social em particular, quer das ciências humanas em geral, a compreensão da sua “génese social”, da sua “genealogia”, como refere Denys Cuche (1999), contribuirá para uma melhor e mais informada compreensão dos seus sentidos actuais, em particular nas ciências sociais. Segundo este autor (1999), a palavra “cultura” surge nos finais do século XIII designando uma parcela de terreno cultivada, e assume posteriormente, no século XVI, o sentido de acção, a acção de cultivar. É também em meados deste século que a palavra passa a ser conotada também no sentido figurativo do cultivo de uma qualidade, podendo designar a “cultura” de uma faculdade, no sentido de a desenvolver, mas permanece afastada dos dicionários até ao século XVIII, altura em que se impõe no seu sentido figurado, surgindo no Dicionário da Academia Francesa, na edição de 1718 (Cuche, 1996). No entanto, este conceito de “cultura” surge seguido de um complemento, como se se mostrasse necessário explicitar aquilo que era “cultivado” (Cuche, 1996). Para Denys Cuche (1996), a palavra torna-se parte do vocabulário do Iluminismo, e acaba por se autonomizar em relação aos complementos, passando primeiro, a referir a acção de “formação” ou “cultura”do espírito, e depois a estado: ser-se ou não se ser culto; ter-se ou não se ter “cultura”. No pensamento iluminista o significado de “cultura” é colocado em oposição ao de “natureza”, e é utilizada no singular, reflectindo o seu carácter universalista, como resultado do acumular do conhecimento e dos saberes do Homem (Cuche, 1996). E neste sentido, os seus usos acabam por ser muito semelhantes aos de um outro conceito: o de “civilização” (Cuche, 1996). Mas este é, para Cuche (1999), o uso da palavra em França, ou pelos intelectuais franceses da época.


Na Alemanha, o termo kultur surge no século XVIII, como que uma transposição quase exacta do termo francês, pela influência do iluminismo, por um lado, e por outro, pelo uso da língua francófona pelas classes mais altas da Alemanha (Cuche, 1996). O contexto social e político da Alemanha na segunda metade do século XVIII, levará à apropriação do termo “cultura” por parte da classe burguesa que procurava afirmar-se em oposição à nobreza que, por sua vez, via nos valores franceses uma espécie de guia ou de exemplo a seguir (Cuche, 1996). A burguesia acabaria por usar o termo em oposição ao de “civilização”, por o considerar apenas “aparência brilhante” ou “refinamento superficial” (Cuche, 1996). Desta oposição entre uma classe aristocrata que se prende à cultura francesa, e de uma classe burguesa que procura conquistar terreno e peso na sociedade alemã, passar-se-à de uma afirmação da “cultura” dos segundos em oposição à “civilização” dos primeiros (Cuche, 1996). A Alemanha do século XVIII não se encontrava unificada a nível nacional, e, pode dizer-se, a elite burguesa via-se incumbida da missão de unificar os estados alemães pela afirmação daquilo que era do domínio do espírito burguês, ou seja: procurariam a unificação dos povos germânicos pela afirmação de uma “verdadeira cultura” alemã, característica desta classe, da qual derivaria a essência do espírito alemão (Cuche, 1996). Na viragem do século, na Alemanha, o termo “civilização” passa a conotar a França e as restantes potências ocidentais, e, por seu lado, o termo “cultura” de uso burguês tornar-se-á marca distintiva da nação alemã inteira (Cuche, 1996). A partir desta separação entre o “nós, alemães” e o “vós, os franceses (e o resto da Europa) ”, pela definição pelas elites do que seria a “verdadeira essência cultural” alemã, adivinha-se, olhando em retrospectiva, a afirmação de uma identidade nacional no seu início, e a criação das respectivas políticas, que se começaram a desenvolver no século XIX (Cuche, 1996). O conceito assim apresentado, surge muito mais como uma invenção ou elaboração das elites que, a partir do acima descrito, faculta à burguesia um determinado poder pela definição do que é a “cultura”, quer no sentido civilizacional universalista, quer na configuração de uma ideia de cultura relativista ou etnocêntrica, na definição do que somos “nós” em oposição aos “outros”.

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