A lista ( cont. ) # In: O mapa de autoestrada

in #pt5 years ago (edited)

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.....(continuação).

Pouso o olhar no lago castanho e fumegante que me espelha, despenteada, numa sucessão de insucessos românticos que passei mentalmente em revista. Um por um, revivo os começos, os entusiasmos ingénuos, os saltos de fé, a tola entrega incondicional, os sonhos irrealistas…e depois o desgaste, o declínio, aquele apego teimoso de confirmação que se veste de virtuosa paciência - até tudo descambar na necrópole inexorável das promessas inconsistentes.
Revivo o primeiro beijo cheio das promessas que esmoreceram nos olhos vagos do Nandocas. Pestanejo; reconforto-me no apertado abraço do Luis, que foi deslaçando à altitude de cruzeiro das suas distantes viagens. Pestanejo; navego pelo aroma das lareiras do Gerês que o Pedro deixou esmorecer ao brando calor da América do Sul. Pestanejo; vejo as paisagens ondulantes do Alentejo deslizarem para fora de Portugal e levarem com elas o João das minhas apostas. Pestanejo, já a cortar as lágrimas grossas…e agora, também tu me abandonas.
Aperto as pálpebras teimosas de lembranças. Só quero apagar-me desta viagem de mágoa, mas tudo se atropela no pensamento sem eu perceber se é uma sucessão de bênçãos ou um ror de horrores.
Regresso ao esgotamento dos sentidos que não têm por onde continuar a querer, e sinto-me em escombros dentro do pijama, como se nada restasse para reconstruir nesta quietude sem horizonte e da qual, estranhamente, nem apetece sair.
Mas saímos. Sempre.
Estive toda a tarde nesta infelicidade modorrenta que reguei com lágrimas de resoluto luto, até que veio a vida, naquele seu jeito “deixa-te-de-merdas”, e a gata me saltou para o colo, a miar desalmada que já não havia wiskas na gamela. Depois, cautelosa, farejou-me o rosto molhado e inchado e esquivou-se, repugnada, do hálito de bode que exalava o meu queixume.
Foi tudo o que precisava para cruzar de vez a meta da maratona de comiseração. Afastei a manta, enxotei a gata e pulverizei as memórias para o ciberespaço, onde fui buscar um Jesus aos Depeche Mode que me arrebitou o ânimo e levou para um banho quente e apaziguador.
No dia seguinte entrei perfumada num vestido preto justo, ataviei-me de colares, e com uma vistosa echarpe, sandálias douradas e uma mala Dior contrafeita, saí para a segunda-feira que me esperava de benfazejo sol.
À saída do prédio tropecei num cão desmiolado e saltitante a pedir festas que depois rejeitava, com a língua trocista a balançar de gozo. A meio da manhã fui seduzida pelo magnético olhar de encanto que me lançou um menino de sete anos e me deixou de moral em alta. E pelo final do dia piscava-me no telemóvel uma mensagem não esperada e ilustrativa de que o amor tem muitas faces, muitas cores e muitos tempos.
A caminho do estacionamento passei pela montra da Zara, onde quase que juro ter visto um ancião barbudo de cajado na mão e uma concha vieira ao pescoço. A visão peregrina piscou-me o olho e assentiu com a cabeça, que sim, que agora eu tinha a visibilidade suficiente para saber que tudo passa, tudo muda e tudo se reconstrói.
Com um sorriso de mim para mim, reparo nas mãos que hoje não trazem anéis. E que não esperava sentir-me tão forte tão depressa.

(Pode rever a 1ª parte em https://steemit.com/pt/@isabelpereira/a-lista-in-o-mapa-de-autoestrada )

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Muito bom! Continuo acompanhando. Como sempre descrições muito ricas. Que me leva a construir essa cena na minha mente. Além da empatia, dessa personagem que busca algum contato real, no imaginário, mesmo sem sustentação e em lembranças cheias de sentimento. O poder do olhar, do reconhecimento de que existe, que não se sustenta na própria solidão, seja o reconhecimento do menino de 7 anos, ou desse idoso. A angústia da solidão é por demais martirizante. É a que dói a alma. Muito rica sua história, fiquei viajando aqui tentando interpretá-la e refletir sobre a mesma. Obrigado pela partilha!

:D Steemerabraço, @matheus

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