CRÍTICA | A Balada de Buster Scruggs
Uma das características que mais me encantam como espectador é a habilidade do cinema em criar mundos cuja lógica só depende de si mesma para funcionar. Isso fica bem evidente quando falamos de alguns gêneros como fantasia, terror e algumas vertentes da ficção científica. Mas é mesmo quando as regras da ficção se misturam de maneira difusa com obras que parecem mais realistas é que esse poder da narrativa se torna mais fascinante. Se há uma dupla de cineastas que construiu sua carreira praticamente criando uma marca usada como um adjetivo é a formada pelos irmãos Ethan e Joel Coen (Fargo, O Grande Lebowski, Onde os Fracos Não Têm Vez). Não por acaso, é comum que se ouça coisas do tipo “esse filme tem uma atmosfera bem irmãos Coen… ” ou “um humor negro bem coeniano… ” sempre que essas qualidades específicas imediatamente remetam ao trabalho dos dois. Pois bem, se considerarmos o mais recente, A Balada de Buster Scruggs, lançado recentemente no catálogo da Netflix, aí que é impossível não dizer que esse tem ainda mais a cara de seus realizadores.
Fora a incursão mais direta em Bravura Indômita (2011), o gosto pelo faroeste já tinha aparecido em algumas de suas obras, principalmente na maneira como o vencedor do Oscar, Onde os Fracos Não Têm Vez, utiliza de seus símbolos para depois subverte-los de forma original (especialmente no 3º ato). Só que dessa vez, eles entraram a fundo no grande mito cinematográfico do oeste americano. Trata-se de uma reunião de seis histórias independentes (ao menos em termos de trama e personagens) contadas com todas as referências que agradarão qualquer fã do gênero. Mas claro, todas elas fazendo parte do particular universo que sempre permeia a filmografia dos diretores: personagens tragicômicos, um humor negro bem específico e a riqueza dos temas por trás da narrativa.
Já de cara, o primeiro segmento da obra trata de brincar com o que se considera como o arquétipo do cowboy americano. “Brincar” aqui não é eufemismo. O personagem vivido por Tim Blake Nelson (o próprio Buster Scruggs), de forma obviamente exagerada, entra em cena cantando uma canção e se apresentando ao público a partir de sua visão estranhamente espirituosa e otimista do mundo. Vestido de branco e impecavelmente limpo, surge completamente oposto ao restante dos habitantes de uma pequena cidade no meio da vastidão (como em qualquer faroeste); esses, brutos e nada amistosos, parecem não compreender a maneira como o forasteiro se apresenta. A nossa expectativa é logo abalada quando seus modos são interrompidos pela violência e precisão de sua pistola. É um primeiro impacto que tira graça do incômodo absurdo e inesperado de um capítulo com forma de um musical.
A sensação de ironia não só permanece como se intensifica quando o longa passa para o segundo capítulo, sobre um assaltante (James Franco) que se depara com um pequeno banco no meio nada – e só para manter o toque no roteiro, também escrito pela dupla, o banqueiro age de forma quase ingênua, para logo depois contar despretensiosamente como violentamente lidou com os últimos que tentaram roubá-lo. Basicamente um conto sobre o azar, inundando num desesperançoso tom sépia, que mostra o lado implacável do faroeste e vai deixando a impressão de um caminho mais sério para as historias posteriores.
Aliás, falar em “episódios” é literal, já que a estrutura concebida segue a lógica dos capítulos do livro fictício do qual os trechos são retirados, The Ballad of Buster Scruggs and Other Tales of the American Frontier. Não só de forma indireta, mas cada trama é intercalada com a imagem de uma mão virando as folhas do livro, nos colocando do ponto de vista de um leitor que sabe estar acompanhando contos de moral com todas as concessões que poderiam deixar nossa suspensão de descrença prejudicada. Além de deixar claro a proposta fantástica da narrativa, o recurso permite que conectemos as histórias mais pela temática do que pela lógica da trama ou por qualquer tipo de ligação entre os personagens.
Se antes o tom mais debochado imperava, a partir do 3º conto a abordagem mais sombria e trágica começa a entrar em evidência. A trama mostra um viajante (Liam Nesson) que passa de povoado em povoado apresentando uma peça em forma de monólogo declamado por Harrison (Harry Melling), um artista sem as pernas e os braços. Talvez a melhor utilização do silêncio no longa, o arco da exploração do rapaz pelo empresário ganha força na sugestão das imagens e comove pela incongruência entre a arte (e seu criador) e a necessidade comercial – tema que, inclusive, é comum ao famoso soneto Ozymandias, citado diretamente por Harrison.
Essa atmosfera mais séria é auxiliada pela bela fotografia de Bruno Delbonnel (O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, O Destino de uma Nação), mais escura e opressiva, assim como se segue na história de Alice (Zoe Kazan) e Billy Knapp (Bill Heck), próxima de um realismo que case mais com as pretensões dramáticas. Já de acordo com o tema de cada segmento, ela acompanha perfeitamente a lógica de cada um. Dessa forma, Buster Scruggs tem como pano de fundo as grandes paisagens desérticas e rochosas características do gênero, focadas com uma gigantesca profundidade de campo que as tornam propositalmente mais próximas de uma pintura – inclusive, lembram bastante os cartazes de divulgação dos clássicos de faroeste da década de 40 e 50 (os anos 60 também não ficam de fora e um personagem que aparece tocando uma gaita no horizonte nos transporta imediatamente para uma das obras-primas de Sergio Leone, Era Uma Vez no Oeste).
Ainda mais diferente do que ocorre com as partes mais melancólicas, o aspecto visual surge ainda mais presente na história do garimpeiro (Tom Waits), que descobre uma grande área natural e intocada, pronta para ser investigada pelo primeiro forasteiro, observado de longe pelos animais desconfiados do visitante. As cores fortes, o brilho e os grandes planos abertos, que mais parecem ter saído de uma animação da Disney, são o palco para o arco simbólico da maculação da natureza como consequência da exploração do ouro. E não deixa de ser interessante notar como esse mesmo segmento pouco se parece com outro, onde um condutor (Jonjo O´Neill) transporta três passageiros ao longo de uma estrada rumo a um objetivo misterioso, num jogo de diálogos que vai revelando um teor filosófico inicialmente inesperado. Mesmo diferentes, não parecem desconectados justamente pela eficiência da narrativa em torna-los orgânicos com a proposta.
Apesar de haver essas conexões que funcionam em cima de graduadas mudanças na fotografia e na forma como a direção homenageia os elementos do faroeste, é mais no ótimo roteiro onde a confluência temática acontece, além de fazê-lo através de bons diálogos intercalados por suas acertadas ausências (foi vencedor na categoria no último Festival de Veneza). A Balada de Buster Scruggs é um ótimo exemplar de como usar a particularidade fantástica do cinema para tratar de grandes temas e explorar bons personagens. Além disso, é tecnicamente exuberante e ainda conta com a trilha sonora de Carter Burwell(Três Anúncios para um Crime).
Talvez pelo fato de ser um “exemplar Netflix” e não ter recebido tanto buzz como costuma acontecer vindo de seus realizadores, pode passar bastante despercebido. Mas não dá para negar que é filme com o peso e prestígio da experiência e da relevância de uma dupla celebrada. Mais uma vez, um ótimo exemplo de como trafegar entre diferentes estilos sem deixar de lado o exercício cinematográfico, tanto com o gênero quanto com as marcas do peculiar mundo dos irmãos Coen.
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Acho a carreira os Coen bem interessante, apesar dos tropeços.
Pra mim eles são um dos mais importantes nomes do cinema. Apesar de não ter visto todos os filmes dirigidos, de todos que assisti, não acho nenhum tropeço.
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