‘Castle Rock’, um lugarejo diabólico

in #pt6 years ago

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Quando o espírito do mal é centralizado numa pessoa ou num grupo delas que, comandadas por planos malévolos, executam ações macabras contra outros ou até si próprias, a punição é fácil de ser deliberada. Mas como agir se tais atitudes desumanas não forem personalizadas por alguém, mas magnetizadas pela energia emitida por um lugarejo diabólico? É desta simples mas intrincada premissa que Stephen King se serve para desenvolver a maioria das suas histórias, baseadas em grande parte nas suas vivências. Natural do Maine, o proclamado mestre do terror plantou pelo seu estado natal diferentes cidades ficcionais onde desenvolveu as suas obras mais populares, muitas delas já adaptadas ao pequeno ou grande ecrã. As três mais referenciadas formam uma perfeita trindade maldita - Jerusalem’s Lot, da obra ‘Salem’, Derry, a cidade atormentada pelo palhaço de ‘It’, e a famigerada Castle Rock, que dá nome a esta nova série da plataforma digital Hulu. Numa homenagem ao lugar edificado pela juventude perturbada de ‘Lord of the Flies’, de William Golding, este nome não é de todo estranho para os fãs incondicionais de King, já que é o local onde decorrem ‘The Dead Zone’, ‘The Dark Half’, ‘The Body’ - conto integrante do livro ‘Different Seasons’ -, ‘Cujo’ e ‘Needful Things’. Ao contrário da maioria das adaptações, esta não parte, no entanto, de um trabalho em particular, mas das ideias semeadas ao longo dos vários livros, adubadas por um clima de suspense e terror psicológico característicos do escritor.

O gelo faz estremecer, logo nas primeiras imagens, quando o espectador é transportado para uma tempestade invernal que assolou o estado de Maine, em 1991. A população de Castle Rock centra as suas atenções nas buscas pelo filho do pastor da congregação, Henry Deaver. O chefe da polícia local, Alan Pangborn (Jeffrey Pierce/ Scott Glenn) acaba por encontrá-lo, perdido, no meio de um lago congelado, após ouvir um estranho zumbido excruciante. No entanto, devido a ferimentos fruto dessas buscas desenfreadas, o pai de Henry acaba por falecer. Irracionalmente, a população aponta o dedo à criança que, crescendo na culpa, abandona a cidade. Passados 29 anos, a poeira parece ter assentado sobre a localidade, até que o diretor do Estabelecimento Prisional de Shawshank decide terminar com a própria vida de forma aparatosa. Desconhecendo-se as razões para tal ato pecaminoso, segue-se uma banal tentativa de retorno a uma normalidade fátua, com a contratação de uma nova diretora (Ann Cusack) que cedo pretende demonstrar a sua garra e inicia um rol de mudanças para se distanciar do seu predecessor. Intrigada pelos motivos que determinaram o encerramento de um dos blocos da prisão, onde anos antes ocorreram eventos extraordinários, exige aos guardas prisionais que o reabram e vasculhem os seus recantos. A meio desta missão, encontram um reservatório de água encerrado e, guiados por uma curiosidade humana, abrem-no, descobrindo no seu interior uma cadeira, um balde cheio de beatas e, escondida nas sombras, uma cela solitária que enclausura um “Rapaz” enigmático (Bill Skarsgård), de olhar heterocrómico vago, que parece sofrer de um mutismo ensurdecedor até este ser interrompido por um nome: Henry Deaver. Considerando estar a agir da forma mais correta, um dos guardas telefona então ao filho pródigo que, num ato de contrição pelas ações passadas, se tornou advogado das causas perdidas, defendendo réus sentenciados à pena de morte. Henry (André Holland) toma então a decisão de uma vida: retornar à terra natal para representar este intrigante prisioneiro, não identificado e sem processo criminal. Todavia, o regresso é conturbado por uma maré de novidades e intrigas, encimadas pelas reverberações sonoras do passado que teimam em fazer o seu caminho de volta ao mundo atual.

Ambientada por um clima de mistério, tão característico das obras encabeçadas pelo produtor e realizador J. J. Abrams, a série dirigida por Sam Shaw e Dustin Thomason joga com um conjunto de referências ao universo de King, patentes desde logo no genérico, que conta com uma composição musical que arrepia desde os primeiros acordes. O título é composto pelo mapa territorial das várias localidades fundadas pela mente do criador, em conjunto com torrentes de páginas rasgadas com alusões às suas obras, como o processo da fã obcecada de ‘Misery’, o sorriso diabólico do palhaço Pennywise de ‘It’, o organigrama da prisão de Shawshank, o número do quarto dos horrores do Hotel Overlook ou a repetida lengalenga “Redrum, Redrum”, elementos que partilham uma correlação conceptual com a série, não tivesse Molly Strand (Melanie Lynskey), amiga de infância de Henry, um dom semelhante ao de Danny Torrance, o miúdo de ‘The Shining’. Para garantir que as incessantes caixas de Pandora são abertas no momento exato, dado o elevado número de ideias exploradas, a produção conta ainda com a supervisão do próprio King, que revisa todas as interligações engendradas para que, ao contrário de outros trabalhos, nada seja deixado ao acaso ou fora da sua idealização. A repetitiva fragmentação da linha temporal, em sucessivas idas e vindas, tão características de muitas séries recentes, pode dificultar a conexão com o público. Além disso, a menção de tantos episódios marcantes e o descortinar de mistérios sucessivos requer um ritmo lento para que o espectador se consiga focar nessa amálgama ficcional. E há que combater o bucolismo. De forma a garantir algum movimento, são utilizados alguns planos holandeses, na medida certa, que não só combatem qualquer inércia como agigantam o ambiente tenso. Além disso, as cenas de maior suspense fazem uso de planos fechados, que obrigam a audiência a conter a respiração dada a sensação claustrofóbica incutida, incrementada ainda mais pelos jogos de luz e sombra, esquadrinhados por uma equipa técnica de luxo que conta com nomes como Jeffrey Greenley e Richard Rutkowski. O grande impacto da série é garantido pelas exímias atuações de um esmerado elenco, encabeçado por Holland, ao desempenhar um homem que perdeu parte da infância, o que provoca um impasse na sua vida adulta. Mas o destaque vai para Sissy Spacek e Bill Skarsgård, já repetentes em adaptações das obras de King, tendo sido protagonistas dos filmes 'Carrie' (1974) e 'It' (2017), respetivamente. Nesta série, a primeira desempenha a mãe demente de Henry que conquista pela amargura transmitida e pelo misticismo invocado, por exemplo, no ato de esconder várias peças de xadrez pela casa para se orientar na sua realidade. Já o segundo encarna o prisioneiro desconhecido, de poucas palavras, mas com presença marcante, fazendo suster a respiração dos mais incautos. Quanto ao ato final, ficam algumas questões por responder e um par de pontas soltas, o que não se estranha vindo de uma obra esquadrinhada pelo condão do escritor norte-americano. Pela natural vontade de querer saber sempre mais e mais, somos ainda convidados a assistir a um documentário sobre Castle Rock que, entre a realidade e a imaginação, desvenda como as memórias do autor servem de material dissecado nos seus livros. Para aqueles cuja fome fica ainda por saciar, está já prometida uma segunda temporada da série que funcionará como uma antologia sobre o lado negro deste universo ficcional. Aguarda-se, portanto, por uma nova autópsia resplandecente aos enigmas projetados pela mente do maior mestre.

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